sexta-feira, 21 de maio de 2010

Bêbado de mim (ou, ‘rerelendo’ Pessoa)

Eu já tinha passado da cota e da conta. O que é mais ou menos normal. O que não é normal era eu ficar assim, 6h30min, diante do mar, sentado ao sol que urge e surge, com raiva de mim. Mas dessa vez o copo revelou um lado meu que eu desconhecia. Geralmente bebo e fico bobo, apaixonado, filósofo de botequim. Pego papel e escrevo poemas tolos pra mulher lá do fundo do bar - que nunca vou mandar, que nunca vou falar. Ou incorporo Vinicius de Moraes e começo a recitar poesias apaixonadas pra grande amada, real ou inventada. Ou me quedo em divagações sobre tudo e nada, o tudo que são as mulheres e seu mundo mágico e impenetrável e o nada que sou eu diante desse mistério todo que é a vida. Mas dessa vez fui levado pro mar, não sei por que forças. E lá estava eu, diante do mar, sentado ao sol, 6h30min, com raiva de mim. Eu tava me odiando. Tudo bem, eu tinha bebido demais, mas tava me odiando.
Senti pela primeira vez uma raiva tamanha de mim, que tinha vontade de me bater. Então como eu podia amar assim? Então como eu podia entregar a outra pessoa o direito sobre a minha paz, sobre a vontade do meu riso? Como eu podia permitir que alguém que não vai estar no meu futuro, que já estava no meu passado, estragasse assim o meu presente? Então ali, diante de um espetáculo tão majestoso como o mar e aquele sol e aquele céu, como eu podia estar achando a vida sem graça, viver um porre, literalmente, e que amar era uma porcaria? Então ali olhando para aquele ponto mágico onde céu e mar se encontram e que a gente sempre diz pras crianças que depois dele é a África, aquele ponto por onde tantos já viajaram se perguntando se depois dele não vem o fim do mundo mesmo, como eu podia estar ali diante daquilo tudo, pensando que nada valia a pena e que eu era uma grande cacaca sentada na areia? Culpa do amor, pensei. Mas não era culpa do amor. Era culpa do amar. Do meu amar. O amor é lindo, é puro, ele só existe. Era culpa do meu amar a pessoa errada. Mas não existe a pessoa errada. Se eu amei essa pessoa ela era a pessoa certa pra eu amar, senão não amaria. As outras todas que eram as pessoas erradas pra eu amar.
Eu é que não sei amar, pensei, com raiva de mim. Amo sempre demais. Mas se eu não sei amar, como posso amar demais?
Nosso amor era impossível, filosofei com o copo. Mas não existe amor impossível, se ele existe é porque é possível. Ela não me merece, expliquei pras ondas. Mas que tão maravilhoso sou eu, confuso, só e com raiva de mim sentado na praia às 6h30min, depois de vagar a noite por bares atrás dela, para achar que alguém não me merece? Que tão maravilhoso sou eu, que estou me achando fuleragem, para achar que amor tem merecimento? Todo mundo merece amar e ser amado. Todo o mundo merece todo o amor do mundo.
Eu estava bêbado ainda. Mas agora entendo que mais estava era bêbado de mim, encharcado de mim, desse egoísmo de achar que o mundo tem que me entender e dar bola, que os outros não me merecem e tal. O mundo não tem que dar bola pra mim, logo pra mim, que não dou a menor bola pra ele, se não nascemos um pro outro. . . Como disse Fernando Pessoa

Eu tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas...


Arre! estou farto de mim. Eu me mereço! Eu, o centro do mundo, o umbigo maior do que o corpo. O incompreendido. O injustiçado. O sacaneado. Bleahhh! Estou farto disso. Não sou essa bola toda. Queria ser outra pessoa pra não ter que me agüentar. Bêbado de mim. Enjoado de mim. Cheio de mim. E o pior ainda pela frente – a ressaca de mim. Afinal eram 6h30min e o dia estava lindo. Pros outros. E começando, com todo o seu peso, pra mim. Sem ressaca, decidi. Garçom!!