terça-feira, 19 de maio de 2009

Teoria e prática: O jornalismo e a mesmice da vida

A formação e a prática jornalística têm como dogma que um bom texto deve sempre ser escrito de forma simples, de forma que todos entendam - como se constata em qualquer manual de redação. Esse dogma, que numa primeira interpretação, poderia me afastar do pensamento e do texto adornianos, tem justamente a força do contrário, posto que me levou, é bem verdade que aos poucos, a ancorar e, por fim, aportar em Adorno. E me salvar. Para explicar isso é preciso dizer que por mais de duas décadas exerço o magistério superior, lecionando disciplinas que, só também numa primeira interpretação, podem ser vistas como distantes em forma e conteúdo: redação jornalística e teoria da comunicação, uma prática e outra teórica. Aos poucos fui percebendo que elas estavam, realmente, tão distantes na roda do mundo... que se tocavam. Aos poucos fui percebendo que Adorno se interpunha entre as duas disciplinas e que ele ia se constituindo no ponto, não que separava, mas que as unia, pelo menos em mim.
Na primeira, redação jornalística, com conteúdo programático preso às técnicas de redação importadas da cultura pragmática e midiática norte-americana, eu me via diante da formatação e da padronização justamente que a segunda, teoria da comunicação, no enfoque da indústria cultural, apontava e condenava. Por um lado, então, eu “ensinava” os alunos a produzirem textos dentro das fórmulas e moldes ditados pela técnica jornalística, isto é, textos que seguissem os mandamentos da clareza, da ordem direta, da voz ativa, da concisão, enfim, que seguissem o que os manuais, todos os manuais, diziam e ainda dizem que são os requisitos para um bom texto. Porque ele seria ouvido ou lido por todas as classes, do operário que prepara paredes sólidas numa construção, ao douto profissional liberal que, solidamente instalado, ocupa essas quatro paredes. Em outras palavras, o texto era para um público heterogêneo e assim ele devia ser homogêneo. Sendo para todos, ele deveria ser para ninguém, porque ele era para a massa. Eu, vítima como todos de um mundo fracionado, de um ensino fragmentado e de um pensamento, por conseqüência, também compartimentado, não percebi isso aos poucos, muito aos poucos, fazendo o meu caminho, me (re)construindo – muito graças a Adorno – a partir do que havia sobrado de mim, de “eu”, do que não me fora “mesmizado”, destruído mesmo. E foi então, trabalhando com a indústria cultural, na disciplina de teoria da comunicação, que comecei a juntar as peças separadas e, mais que isso, comecei a perceber que essas peças foram propositalmente separadas. Fui percebendo que ensinava numa disciplina – redação jornalística - a fazer de um jeito que era justamente o jeito que eu ensinava que a outra – teoria da comunicação - condenava. Ensinando, aprendi que a técnica e a teoria andam juntas sempre, a mesma face de uma mesma moeda chamada vida, e que eu como o mundo, as tratava de maneira separada. E aprendi que a primeira, a técnica, despreza a segunda, tida como algo vago, imponderável, inútil mesmo. Fui percebendo que os alunos desprezavam a teoria – as disciplinas teóricas eram, como são, chamadas de “caça-níqueis” -, fui percebendo que eles desprezavam aquilo que não ensinava a fazer, mas que ensinava a pensar o fazer. Fui percebendo que a teoria era e é vista no mundo da obrigatoriedade do pensamento objetivo, como um mal necessário, algo a suportar. Adorno, falando sobre o ato de escrever, diz no aforismo Atrás do espelho, em Minima moralia (p.75):

O escritor instala-se em seu texto como em sua casa [...]. (Seus pensamentos) são para ele como móveis nos quais se acomoda, sente-se bem ou se irrita. Ele acaricia-os afetuosamente, usa-os, desarruma-os, organiza-os de outro modo, arruína-os. Para quem não tem mais pátria, é bem possível que o escrever se torne a sua morada.

Fui percebendo que a técnica que tanto eu usara como profissional da escrita e que agora passava para meus alunos, funcionava sem dúvida, “comunicava”, mas era a técnica do pensamento objetivo, instrumentalizado. Comunicava faticamente, como diria Jakobson, assim como o “bom dia” frio e impessoal ao porteiro do prédio comunica minha existência (nossas existências), mas não lhe comunica um sentimento. Usando a metáfora adorniana que coloca os pensamentos como móveis de uma casa, eu percebi que esses móveis na verdade eram inarredáveis, móveis imóveis, construídos para serem daquele jeito e ficarem naquele lugar fixo, pensamentos amarrados. Eram pensamentos da vida instrumentalizada, filhos da razão instrumental. A técnica de escrever, no particular, domava e dominava o pensamento – como obviamente ainda o faz, do mesmo modo que a técnica toda doma e domina tudo e todos. A técnica de escrever gera a técnica de ler, assim como a técnica de fazer um filme gera uma técnica de ver um filme. Se sair daquilo que é o formato, a gente não entende aquilo que é o conteúdo. Por isso temos dificuldades nos textos mais elaborados, que extrapolam os modelos e fórmulas. E textos aqui tem o sentido semiótico de todos os textos – uma notícia, um livro, um filme, uma roupa ou mesmo uma postura. A técnica é como uma sala cheia de móveis que não se pode mudar de lugar: oferecem até conforto, mas são sempre os mesmos, senta-se olhando sempre para o mesmo lugar. Aliás, já se procura o mesmo lugar para sentar porque se sabe para onde se olhar e o que se vai olhar. É como o velho cavalo do padeiro, que “decorou” cada parada – a casa está vazia, o dono se mudou, mas a parada é automática. No caso da produção textual, escreve-se de modo tão sempre igual, que qualquer outro jornalista, cavalo de padeiro, poderia fazer o mesmo texto. “Qualquer outro” são todos e não é ninguém. E o leitor, tão rotinizado e robotizado na sua leitura, cavalo de padeiro, pode ser qualquer leitor. Qualquer leitor também é ninguém, porque são todos. No ensaio Sobre música popular Adorno vai dizer: “O ouvinte sente-se lisonjeado porque ele tem o que todo mundo tem”. Era sobre música que escrevia, mas vale também para a leitura, já que na vida administrada pela razão, a padronização da produção e a reprodução da mesmice mudam só de lugar, as salas são sempre iguais, os textos são sempre iguais.

Teoria e prática: O jornalismo e a mesmice da vida (final)

Fui percebendo, aos poucos então, que a minha atividade profissional como jornalista era a realidade de todos os profissionais, não só jornalistas – uma vivência de práticas, de técnicas, de fórmulas, clichês, standards e slogans que envelheciam ad infinitum sem desaparecer nunca. Entendi que, no caso da comunicação feita através da indústria cultural, como disse Bruno Pucci

[...] as conseqüências inevitáveis do uso abusivo dos clichês desembocam no “esvaziamento da atividade de comunicação”, no “empobrecimento da imaginação do indivíduo”, na justaposição de um discurso demasiadamente colado aos fatos ou por demais abstrato. Podemos dizer que os clichês se transformam no avesso dos exercícios estéticos propostos por Baumgarten, ainda no século XVIII, para desenvolverem nas pessoas “a aptidão para pensar de modo belo e de modo lógico ao mesmo tempo”. Através deles, se pode exercitar e harmonizar os sentidos e as “faculdades inferiores”, em proveito da elegância do conhecimento. E experimentar o mais plenamente possível a fantasia, a perspicácia, o dom poético, o gosto fino e apurado, a disposição de pressentir (arte divinatória) e a capacidade de expressar com elegância suas percepções.Na era esplendorosa dos meios de comunicação, tudo é facilitado, tudo se torna tão próximo, tudo já vem pronto e direcionado [...].

A palavra é, assim, “cunhada pelo comércio”, isto é, é transformada em instrumento para a compreensão rápida, digestão imediata, pseudamente isenta, falsamente acrítica. Fui aos poucos entendendo que a vida vivida nesse mundo instrumentalizado é toda ela – não só a do jornalismo - voltada para essa praticidade, essa visão de resultados, um outro nome para a cegueira. Pucci vai falar no texto já citado em “orientação funcionalista e fragmentária”, “visão dicotômica e fragmentária”, referindo-se aos cursos pré-vestibulares e aos cursos de graduação, lugares onde “a exclusão da reflexão e do estético [...] transferem para a pós-graduação [...] candidatos com dificuldades extremas para pesquisar, elaborar reflexões, redigir um texto”. Era sobre ensino formal que ele escrevia, mas vale também para o “grande” ensino, a grande escola do mundo, além dos muros das escolas institucionalizadas, que mais formata do que forma tudo e todos. Tal qual o Operário em Construção, de Vinicius de Moraes, que de operário construído se fez operário em construção, eu percebi o quanto fragmentariamente eu ensinava e vivia, e o quanto à vida toda e tudo é isso. E me mudei de mim mesmo. Hoje não rejeito as fórmulas, os rótulos, mas questiono-os. E na medida do impossível busco o diferente, a variante, o outro jeito. Minhas aulas de redação jornalística ainda ensinam o texto formatado, condição de mercado, mas com postura crítica, de que se escreve assim porque se escreve pra ninguém, ou para todos, que é a mesma coisa. E trabalho sempre o texto livre, leve e solto, condição básica de vôo e sobrevivência para cada um que quer flanar pelo universo da palavra, do jornalismo, e da vida, enfim. Como pessoa cada vez mais reverencio os Satie, os Modigliani, os McCullers, gente diferente, que fez a diferença.
Quero destacar, também, que nessa caminhada com Adorno percebi ainda que como professor eu fui ensinado que ensinar, ser didático, era explicar coisas aparentemente complicadas, ou complicadas mesmo, mas sem apresentar essas coisas aos alunos. Por exemplo: eles não liam Adorno, mas liam textos mais acessíveis que descomplicavam Adorno, que, como disse Valls, escrevendo difícil fazia o “seu jogo de esconde-esconde e de meias palavras [...] por simpatia, por respeito à inteligência do leitor”. O pensar com mais profundidade era (e é)) desestimulado. Mas se “conhecia” Adorno. Mais ou menos como se “conhece” a Sinfonia nº 40 de Mozart através do trecho mais popular dela, de preferência usando como referência o enunciado: “aquela da propaganda do sabonete”. Essa superficialidade, estendida a todas as formas do viver, um viver danificado – o viver do clichê, da padronização, dos jogos de aparências em que estamos metidos, do fácil e do fútil - isso foi do que acabei me dando conta, em reconstrução, a partir das idéias de Adorno e Horkheimer. Eu já quase virava dinossauro, não tanto pela idade, mais pela dureza/rudeza que o mundo objetivo e seco me impingira no corpo e na alma. Mas como bem frisou Che Guevara, de que devemos endurecer, “pero sin perder la ternura jamás”, sobrou um pouco de mim, e desse pouco refiz-me, no que ainda deu tempo e no que havia ainda de tinta para escrever a minha própria narrativa de ser. Essa reconstrução, lembro Barthes, deu-se com “nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível". Tenho saboreado muito, desde então.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

As mulheres só querem sexo

Eu tomava uma cerveja, depois da aula, num bar em frente à Unisinos, universidade onde eu trabalhava, no torrão gaúcho, e um aluno se aproximou com aquela intimidade que a noite propicia e o álcool exacerba. Conversa vai e vem ele entrou no assunto que estava enlouquecendo o seu copo.
“Professor, é o seguinte. Não agüento mais essa mulherada.Não consigo uma garota prá namorar. Só prá transar. Toda sexta à noite eu saio, vou num bar, uma danceteria, e arrumo mulher prá dormir. Mas eu quero namorar, sabe?”
E explicou o que era namorar prá ele.
“Eu quero ficar em casa com a menina fazendo massa e enchendo a cara de vinho barato, daqueles de garrafão. Quero caminhar de mãos dadas pela calçada. Quero gostar, sabe?”.
Aquilo me lembrou imediatamente uma outra conversa, dessa vez com uma garota, também aluna. Ela me pediu que apresentasse alguém prá ela, que ela não agüentava mais não ter namorado. “Puxa, professor, o senhor conhece todos os alunos, me apresenta um que queira uma namorada. Os homens não querem mais namorar, só querem transar.” As mulheres se queixam muito dos homens.
Pensei em apresentar os dois, mas não me lembrava mais quem era a menina. Mas contei a história para ele, que enquanto me escutava enchia o seu copo. Ele era um tipo que acho que as universitárias acham interessante. Devia ter uns 24 anos. Pele morena, cabelos num corte meio feminino, penso que chanel, um brinco discreto. Mas com cara e corpo de homem, o que fazia um arranjo bonito.
Daí passamos a falar de livros, aula. Até que uma menina no fundo do bar chamou a atenção dele. Bonita, loira do tipo “olha como sou gostosa”, ela atirava os cabelos pra lá e pra cá, e entre um gole e outro de cerveja olhava para o pobre procurador de namorada. Talvez conscientemente, ela bebia sua garrafinha direto no bico. Isso reforçava o jogo de sedução que ela estava jogando, pelas mensagens outras que passava ao procurador de namorada. Procuradora de namorado?
Vi o brilho no olho dele. E lá foi, copo em punho, conversar com a menina. Procurar o quê mesmo?
Fui pra casa pensando em Vinicius de Moraes que escreveu: “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Fui pra casa pensando em Arthur da Távola, que disse que “não tem namorado quem não sabe o valor de mãos dadas; de carinho escondido na hora que passa o filme; de flor catada no muro e entregue de repente... “
Fui pra casa cantando Vinicius baixinho, respeitando meus ouvidos: “Se você quer ser minha namorada / ah! que linda namorada você poderia ser / se quiser ser somente minha / exatamente essa coisinha / essa coisa toda minha / que ninguém mais pode ser...”. Puxa, conquistei “todas” as namoradas cantando essa música. Parecia tão fácil arrumar namorada cantando “Minha namorada”. Mas lembro que os amigos já se queixavam muito das mulheres.
Dias depois, encontrei de novo o procurador de namorada.
Arrisquei: “E aí, encontrou a parceria para o vinho de garrafão?”
E ele: “Que nada! Aquela loira queria era sexo. Fomos lá pra casa, depois de muitas cervejas. Mas não a vi mais por aqui. É o que eu te disse, as mulheres só querem transar, professor”.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

No meio da minha rua tinha um lixeiro

Saía de casa pro trabalho bem arrumadinho e cheiroso. Lá adiante, uns 100 metros, vi um velho lixeiro começando o seu serviço. Empurrava um carrinho e vestia um macacão puído, sujo. A barba branca estava por fazer; o rosto, marcado, expressava um misto de tristeza e dor. Eu me sentia bem nessa manhã. Minha alma devia estar pesando um milésimo de grama. Meus pensamentos estavam em paz e meus sentidos bebiam as cores, os cheiros e os rostos da manhã. Enquanto eu caminhava e me aproximava do velho lixeiro, pensava como pode alguém chegar à velhice assim – caminhando pra morte juntando restos da vida (boa, farta, em alguns casos) dos outros; varrendo as ruas de uma sociedade que nunca lhe deu chances? Quando passava por ele, nossos olhos se cruzaram. Timidamente ele baixou os dele. Pensei que estivesse envergonhado, assim velho e lixeiro diante de alguém, mais jovem, bem arrumadinho e cheiroso. Mas logo a vergonha mudou de lado, se é que estava ou esteve do lado dele. A vergonha ficou por minha conta, ficou em mim, por me flagrar julgando aparências. Quem disse que esse velho lixeiro não deu mais certo do que eu? Quem disse que sua alma não pesava menos que a minha nessa manhã, enquanto empurrava seu carrinho e seu radinho chiava uma música qualquer, mas que eu certamente não aprovaria? Quem disse que esse velho lixeiro, com sua barba por fazer e seu macacão surrado, não deu mais certo do que esses que andam por aí desfilando marcas novinhas no corpo todo, no carro, como se nossas vidas e corpos fossem grandes outdoors do sucesso e felicidade de cada um? E afinal o que é dar certo? Dar é certo é ser feliz, pô! Shinyashiki, aliás, tem um livro que se chama O sucesso é ser feliz. Quem pode dizer que aquele velho lixeiro é mais infeliz do que eu? Ou menos feliz? Ou mais feliz? Sabe-se lá da sabedoria que se esconde naquela cabeça branca – aquela sabedoria que vem da dor e da delícia da vida vivida... Sabe-se lá de suas alegrias, de seus prazeres? Os momentos de enlevo que vive quando a noite chega e esperando o jantar fuma um cigarro, quem sabe até daqueles juntados da rua, escutando sua musiquinha chiada? Sabe-se lá da alegria que ele experimenta nos domingos indo passear na casa dos filhos, ou dos netos, ou ficando em casa, à espera deles? Sabe-se lá como vive bem com sua companheira de tantos anos, e que os anos murcharam e sulcaram e como nas noites frias eles encaixam seus corpos cansados e aquecem suas almas? Pode não ser nada disso. Pode ser mais do que tudo isso. A vergonha ficou por minha. Ficou comigo. Me incomoda ainda. Deitou comigo ontem e atrapalhou meu sono. Acordou comigo hoje e atrapalha o meu dia. Antes de sair pro trabalho, não me sentindo nem arumadinho nem cheiroso, sou salvo por meu velho salvador - Fernando Pessoa:
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
..............
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...