segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Natal, shopping e Cristo (ou "Comprai-vos uns aos outros")

Se um grego viajasse no tempo e caísse num shopping, ele se sentiria extremamente feliz. Ainda mais se fosse nessa época natalina. Ao ver aqueles milhares de produtos à venda, e vendo aquelas pessoas se batendo desesperadamente, correndo atrás de presentes, bens materiais, para si ou para os outros, ele bateria no peito e diria para si mesmo, orgulhoso: “Como eu sou livre, como eu não preciso de nada disso!” Já os livres homens e mulheres de hoje, olhando tudo aquilo de cima, diriam: “Meu Deus! Como eu sou infeliz, eu queria comprar tudo isso!” É, o homo consumens é de outra ordem, de outro planeta – o planeta onde você pra mostrar que gosta de alguém tem que dar um presente, algo que materialize seu afeto, seu amor. Só palavra, só gesto não vale. E quanto mais caro o presente mais seu sentimento é mostrado. Não dar nada para alguém próximo, nem uma lembrancinha, equivale a dizer “você não é importante pra mim”. E isso justamente na data em que se comemora o nascimento do sujeito que pregou que a matéria, a riqueza, não são importantes; justo o cara que escolheu os lascados, os que não tinham como comprar presentes, para dentre eles fomentar sua fé, fazer sua pregação de um outro mundo aqui e agora, um mundo onde o amor era o valor mais alto.
Imagino Cristo chegando num shopping hoje. E imagino que, tal como fez a frente do templo de Jerusalém, onde os vendilhões vendiam tudo, bois, pombas, e agiotas trocavam siclos judaicos por dracmas gregas e denários romanos, Ele começaria a derrubar as prateleiras. Lá, dois mil e nove anos atrás, Ele gritou: “ Tirai tudo isto daqui; não façais da casa de meu Pai casa de comércio". E aqui talvez gritasse: “Pai, eles fizeram tudo ao contrário do que eu disse. Dêem-se uns aos outros em alma e coração e não pedaços de matéria, não em dinheiro”. Sem dúvida, a competente segurança do shopping trataria logo de segurar e prender esse baderneiro que ousava perturbar as compras dos cristãos e ofender o mais puro espírito natalino.
Não sou cristão fervoroso, esclareça-se, mas acho a mensagem de Cristo a mais linda, audaciosa e perfeita que alguém já fez aqui pelo planetinha azul. E fico com pena das criaturas que se acotovelam, se esfalfam, se estressam para mostrar seu amor... com coisas que falem por elas. Passeio pelo shopping e vejo balconistas verdes, com olheiras que me lembram Zé Colmeia, com seus sorrisos entre o cansado e o forçado, cultivando em pé suas varizes e vendo em cada pessoa que entra na loja apenas um percentual no fim do mês. É o Natal cristão! Vejo casais esbaforidos, estressados, divididos entre não perder os filhos, não bater as sacolas e decidir os últimos – ufa! – presentes. Vejo as pessoas verem o outro apenas como uma coisa que lhe atrapalha andar mais rápido e encerrar logo as compras. É o Natal cristão! Vejo uma multidão perdida entre cuecas e meias, livros e CDs, panetones e perus. Enquanto isso o amor despojado jaz atirado numa prateleira poeirenta. Enquanto isso, o abraço sincero, o beijo limpo que traduz o melhor sentimento, a palavra pura que traduz a verdadeira emoção, jazem no fundo de cada um. E o camarada aquele de quem se comemora o nascimento, jaz atirado no esquecimento de uma gente que precisa gastar, precisa comprar pra dar provas de amor; uma gente que tem a vitrine como altar, no dinheiro sua benção e no shopping seu novo templo, sua nova igreja. “Comprai-vos uns aos outros”, não foi o que Ele disse? Oremos, então. Ou melhor, compremos!

sábado, 12 de dezembro de 2009

A cantora nua

Imagine a cena. Corpos nus sobre a cama desarrumada, roupas pelo chão. Recém refeitos do delírio erótico, do "prazer cumprido", como escreveu Braga, ela deitada sobre o peito dele diz que quer cantar uma música pra ele, porque adora cantar. Ele consente, claro, imaginando que vai ouvir aquela voz que tanto ama cantar algo agradável, falando de amor. Algo como uma declaração, tipo “eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras não sei dizer...”. Ou "eu sei que vou te amar, por toda a minha vida..." Mas é outra a música. E a voz... o que ele ouve lhe coloca em novo êxtase, dessa vez um êxtase estético-espiritual. Simplesmente ela canta divinamente, como ele não imaginara jamais. E aquela voz que a pouco sussurrava e gemia vibrando fisicamente nos seus ouvidos, agora transcendia e lhe tocava espiritualmente do modo mais belo que a alma de alguém possa ser tocada. “Deus, ela canta demais!”, pensou. E agradeceu tê-la encontrado, uma mulher linda, que ainda por cima – na hora, era mesmo por cima – ainda cantava como quase ninguém canta. Era como ter uma Marisa Monte particular.

"O que há dentro do meu coração
Eu tenho guardado pra te dar
E todas as horas que o tempo
Tem pra me conceder
São tuas até morrer"


Os versos de Djavan escorriam pelas paredes e por um momento ele acreditou que o casal do quarto do lado parou de fazer amor pra ouvir a voz do amor que cantava ali sobre ele. E que as camareiras pararam nos corredores para, além dos gemidos dos corpos que se desfrutavam, ouvir o prazer da alma que alça vôo e emana o divino em cada um de nós. E que até o segurança lá da portaria fechou sua revistinha em quadrinhos porque sentiu uma vibração no ar e, súbito, olhou para a lua, que tímida, já desistia de ser percebida na sua palidez diurna.

"E a tua história, eu não sei
Mas me diga só o que for bom
Um amor tão puro que ainda nem sabe
A força que tem
é teu e de mais ninguém"


O que vale nessa vida são os momentos que guardamos. E guardamos os momentos mais importantes, os melhores e os piores. Belchior tem um verso lindo - dentre tantos outros lindos - na canção “Como nossos pais”: “Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais”. Mas tem o outro lado: as lembranças mais bonitas, as lembranças do que nos deu mais prazer, alegria, enlevo e satisfação. E a lembrança dela cantando nua, depois do amor, linda e divinamente, ficara gravada e cravada como das preferidas na parede da minha memória. E chegou a condição de ser o quadro mais bonito. Nesse tempo louco, de culto ao corpo e erotizado, se pensa que sexo é tudo, mais do que amor até. Não é. Sexo é ótimo, amar melhor ainda, os dois juntos são o máximo, mas viver esses momentos que transcendem o corpo e o sentimento e se fundem com o espírito, são o que há de mais maravilhosamente humano. Só nós humanos temos essa qualidade do viver. Só nós humanos temos essa faculdade de se embebedar de beleza, de encharcar a alma de leveza, de encher a cara de êxtase.


"Te adoro em tudo, tudo, tudo
Quero mais que tudo, tudo, tudo
Te amar sem limites
Viver uma grande história
Aqui ou noutro lugar
Que pode ser feio ou bonito
Se nós estivermos juntos
Haverá um céu azul"


A beleza dos versos, a beleza da canção, a beleza dela, a beleza da voz dela, a beleza do momento, tudo aquilo fez com que eu agradecesse à vida, a Deus. Mas as coisas desafinaram. Sua voz não canta mais pra mim. Seu corpo não se deita mais com o meu e provoca orgias de prazer. Seu corpo não se deita mais sobre o meu peito e me deleita com o divino de ouvi-la cantar. E hoje na parede da minha memória essa lembrança é o quadro que dói mais. É o quadro mais triste. Ave Belchior.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Eu sou mesmo exagerado (ou Cazuzando)

Estava em um belo papo sobre o amor com a amiga e professora Tânia Tajra, quando me veio a frase de Cazuza “quero a sorte de um amor tranqüilo, com sabor de fruta mordida”. Quando saí - estava a pé -, resolvi caminhar um pouco pensando no que havíamos conversado, no que eu havia aprendido. Aí me assaltou outra obra de Cazuza: “Exagerado”. Pensei: esse é meu momento Cazuza. É que eu sou mesmo exagerado. E, exagerado, não caminhei só um pouco, caminhei muuuuito.
Exagerado, quando choro, seco. Quando bebo, me encharco. Quando fumo, me esfumaço. Quando gosto de um artista, Chet Baker, por exemplo, não tenho só um disco, tenho todos. O mesmo vale pra Chico Buarque, Elis Regina. Idem para escritores, como Carson McCullers, Fernando Pessoa. Quando era criança colecionava carteiras de cigarros com amigos. Eles tinham 50, 100, eu tinha mais de mil. Eu sou mesmo exagerado. Quando estou alegre, não me caibo; e triste, o mundo se faz pequeno pra tanto cinza.
E quando amo... meu Deus do céu! eu amo todo o amor que houver nessa vida. O amanhecer tem a cara do meu amor, a chuva chove o meu amor. Se eu durmo, é que eu quero sonhar só com ela; e se acordo, é por acaso, porque no sonho ela me ama, e se acordo, é por descuido, por engano.
Quando amo não mando flores, mando a floricultura inteira. E aí quando deito, não durmo, e amo me dar por feliz em perder noites de sono só pra vê-la dormir (que prazer mais egoísta o de cuidar de um outro ser, mesmo se dando mais do que se tem pra receber). E faço promessas malucas, tão curtas quanto um sonho bom.
Não façam o que faço. Mas pra mim, exagerado, carteira de cigarros, Chico Buarque e tudo que amo é motivo de culto, devoção. No amor, então, eu largo tudo: carreira, dinheiro, canudo, até nas coisas mais banais, pra mim é tudo ou nunca mais. Acho até que mereço ganhar pra ser carente profissional, levando em frente um coração dependente, viciado em amar errado.
Exagerado. Quando corro, me exauro. Quando vou ao cinema e amo o filme, assisto três sessões seguidas. Quando amo uma música, o cd player pede água. E quando escrevo, descrevo, porque perco o controle sobre meus dedos e eles correm soltos pelo teclado. Me faço escravo das palavras que me possuem. Sou mesmo exagerado. No amor – sou chato e exagerado em falar dele - quando amo, sinto pena de quem não ama assim e chego a pedir piedade. Que o Senhor dê grandeza e um pouco de coragem pra quem não sabe amar e fica esperando alguém que caiba no seu sonho.
Um dia uma namoradinha da adolescência me disse: “tu és muito exagerado”. Daí pra frente, só piorei. Desde então pequenas poções de ilusão, mentiras sinceras, me interessam cada vez mais.
Caminhando, depois da conversa com Vânia, roubei flores dos canteiros fazendo festinha pra mim mesmo. Um vira-lata começou a me acompanhar. Contei pra ele como eu era. Ele abanou o rabo. Parei e insisti que eu era péssima companhia. Ele sentou. Mandei embora. Ele deitou. Pensei: é irmão. E seguimos lado a lado. Exagerados.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

VOLTEI

Depois de algum tempo, volto a acionar o blog, agora de vez e pra sempre.Perdão aos amigos que vieram aqui e não acharam mais nada.Foi uma parada estratégica, para reabastecimento e revisão geral. Agora, na estrada de novo. Bjs e abraços

Da primeira vez que me matei

(Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...
Mário Quintana)


Da primeira vez que me matei, jurei que nunca mais amaria a ninguém de novo. Digo me matei, porque nunca mais amar é uma forma de se matar. Mas inexperiente nas dores do amor, foi assim. “Nunca mais vou amar”, jurei pra mim mesmo. Juramento em falso. Mas passa o tempo e vem novo amor. Passa o tempo e vem nova dor. Porque esse negócio de amar não é brincadeira não. Eu sou dos raros que ainda acreditam que uma história de amor pode durar pra sempre. Mas parece que essa história do amor eterno é a exceção que confirma a regra de que todo amor acaba, pelo menos de um dos lados. E geralmente não é do meu. Não morro de amores por Julio Iglesias, acho meloso demais, mas uma música dele, chamada Hey, tem um verso que gosto muito: “é sempre mais feliz quem mais amou, e quem mais amou fui eu”. Então, geralmente sou mais feliz. Claro que depois, quando acaba, sou o próprio infeliz. Passo por baixo das portas, odeio ver namorados felizes, dias lindos me entristecem e como Drummond, acho o ponto de exclamação uma aberração. Mas passa. Dali um tempo, olha eu sendo o mais feliz de novo. Mas o que quero dizer aqui é que o amor não passa. Ele se transforma em outra coisa. Às vezes numa mágoa profunda, às vezes numa lembrança meiga, momentos lindos; outras, uma raiva pitibulesca. Porque as pessoas que você amou sempre serão especiais, pro bem ou pro mal. É aquela história: ex é pra sempre. Encontrar alguém que amamos, assim, por acaso num bar, por exemplo, gera em nós, sempre, sentimentos atrapalhados. Se estamos com outra pessoa e se a ex está também com outra pessoa, então a coisa fica mais atrapalhada ainda, e para todos, porque o atual amor odeia o ex-amor do seu amor. Geralmente estraga a festa. Mas não devia ser assim, porque o amor é um só, nossa cota de amar é infinita. Gastamos um pouquinho aqui, outro tanto lá, um montão depois, mas o amor é um só. E nós também levamos sempre pedaços dos amores antigos para o novo. Coisas erradas que fizemos, mentiras, traições, ofensas, posturas, birras e burrices e as coisas boas também, claro: uma novidade no fazer amor, uma comidinha; aperfeiçoamos as DR (sigla da moda para “discutir a relação”), novas canções, filmes...
Eu, do fim da relação que tive (não posso dizer fim do meu amor), posso dizer que aprendi muita coisa. Aprendi que amar é uma merda! e que não quero mais saber de amar a ninguém. Que toda essa conversa aí em cima é muito bonitinha, tem muito de verdade, mas, porra! amar é foda! O que eu quero dizer meeeesmo aqui é que não quero que esse meu amor passe e se transforme em qualquer coisa, quero que volte para o palco e seja maravilhoso, sofrido, alegre, chorado, tesudo, brochado, como foi. Quero os fiascos de novo, quero até as baixarias; quero as trepadas inesquecíveis – brincadeiras de carne da melhor qualidade. Quero as fugas, as surpresas, os choros sem motivo, os choros com muitos motivos. Quero as mentiras ditas com cara de verdade, quero as verdades jogadas na cara, quero roubar flores, puxar cadeira, abrir porta (enfim, ser o babaca de sempre). Quero aquela espera agoniada, que não acaba nunca; aquela partida doída, que leva a dor junto no peito. Quero o beijo de cinema depois da briga, num banco de um velho táxi, enquanto o taxista cantarola uma breguice muito vagabunda. Quero o amor vagabundo, quero o lado puta dela, quero o amor divino, os olhos mostrando a alma. Quero o meu amor de volta. Ou juro que me mato pela segunda vez.

Homem morre de medo de mulher

Os dois chegaram altos da balada, já madrugada. Ela senta na cama e com cara de moleca diz: “tira a roupa e vem cá!” Atendendo a seus instintos e à formação de que deve estar sempre pronto a mostrar serviço, ele se posta diante dela, baixa as calças e... nega fogo. Ela fica frustrada. E ele como fica? Melhor nem falar. Os homens me entendem. As mulheres acham que entendem. Ela, além da frustração e do constrangimento (dizer o quê?), sofre também um sentimento de que não é desejada. Pelo menos naquela hora em que ela desejava tanto. A resposta para o ocorrido é simples. Homem morre de medo de mulher. Mulher assim ousada, então, apavora o macho. As mulheres nem imaginam o quanto os homens as temem. Se pesquisassem um pouco sobre esse pobre ser, saberiam o quanto ele se sente inseguro e literalmente morre de medo delas. E falo isso ao longo dos séculos. Nem precisa complicar vasculhando a psicanálise. É só ir na História. Antes, existia, em várias culturas, o mito da vagina dentada, que dispensa explicações (aliás, a própria palavra ‘vagina’ já é assustadora). Sem falar na Deusa-Mãe. Maiores informações basta ir ao Google. Hoje o homem se sente diminuído e medroso por vários motivos. Dois deles: a capacidade orgástica da mulher, incomparável à dele e comprovada por ele; e a performance da mulherada na cama, igualmente aferida. Falo das mulheres em geral, mas no particular da mulher que na cama se mostre muito solta, tesuda, tomando a iniciativa. Essa é um terror. Por isso que o instituto IMS Health - que audita o setor farmacêutico no Brasil e no mundo – aponta que o Cialis foi o segundo medicamento mais vendido no Brasil no ano passado, só perdendo para o Dorflex. O Cialis, pra quem não sabe, é um remedinho pra não acontecer aquilo com o camarada do início desse texto, e é usado em larga escala, inclusive pelos jovens, por garantia. Só pra complementar, o terceiro medicamento mais vendido é a Neosaldina e o quarto, o Viagra, que dispensam apresentações. Desculpe, mas não resisto ao blague - parece que as cabeças são problema para o brasileiro.
Voltando às mulheres, lembro agora de um amigo que teve seu casamento ameaçado bem por esse motivo da pegada feminina. A mulher tomava a iniciativa sempre e não dava oportunidade a ele de ser agressivo, pegador, homem, enfim, como lhe ensinaram que deveria ser. Não sei como resolveram, se resolveram, mas estão juntos até hoje.
Uma outra amiga, conta que quando foi a um velho e conhecido motel que freqüentava com o ex, se fez de sonsa, como se não entendesse de motel, principalmente daquele. Sentou na cama e olhando aquele console cheio de luzes e botões se fez de maravilhada. Apertava um botão e exclamava: “oh, ascende a luz de cima!” Apertava outro e se extasiava: “olha só, esse é da televisão!” Não demorou e o namorado novinho em folha aterrissou do lado dela e cheio de orgulho e autoridade explicou cada botão, cada luzinha. Tiveram uma noite ótima. E nunca tiveram problemas até onde sei. Outra amiga se botou nas lingeries, preparou uma banheira cheia de sais e espumas, com champanhe, taças e muito clima, para que quando o marido chegasse fizessem uma happy hour realmente happy. Aparentemente muito feliz com a surpresa, ele se refestelou na espuma e enquanto ela buscava uma toalha, ele... dormiu. Psicóloga ela, não tinha dúvidas, me dizia depois, de que o sono foi a fuga que ele encontrou para não enfrentar aquela sessão erótica. Eles tinham esse problema. Ele se sentia seguro no feijão com arroz. Ela gostava de novidades, ousadias, curtia preparar o ambiente e desbravar novos. Estou me sentindo um traidor da raça masculina. A verdade é que não está longe o dia em que o homem vai começar a dizer “hoje, não, amor, tô com uma puta dor de cabeça”, ou “hoje tô estressado, meu bem, me incomodei demais no trabalho”. Logo logo os machos do planeta vão criar o Dia Internacional do Homem, pra defender seus direitos, incluindo o de não estar a fim. E olha que nem falei da paranóia do homem com o tamanho do pinto, agora sujeito à comparações. Isso me lembra um trecho do filme Vinícius, de Miguel Faria Jr, onde Chico Buarque pergunta ao poetinha se ele acreditava em reencarnação e, acreditando, como queria voltar a esse mundo. Vinícius disse que “queria voltar ele mesmo, só com o pinto um pouquinho maior”. E daí linco com uma crônica de Walter Navarro, onde falando do filme e a propósito da frase de Vinicius de Mores, diz que “se não der pra voltar como Vinicius, eu gostaria de voltar como eu mesmo, Walter Navarro, mas com o pinto um pouquinho menor. E menos mentiroso também”. Com essa, só posso pedir: Senhor, tende piedade de nós, homens.

O amor tá por fora

Já escrevi, dia desses, que nossa civilização cristã divinizou o sofrimento e assim passamos a medir o amor pela dor que ele gera e não pela alegria, paz e felicidade que produz. Quem eu mais amei foi aquela por quem eu mais sofri, o que não tem valor de verdade sempre. Quero fazer agora uma outra reflexão. Ainda medimos o amor pela dor, mas há algo novo no ar: a idéia de que sofrer por amor é babaquice. Você sofre, tudo bem, mas o mundo ri de você. Ralar pra ganhar dinheiro, pode; se esfolar nesse esquema competitivo, perverso, sem ética, é a regra. Sennet, no livro A corrosão do caráter, mostra o quanto estamos nos destruindo como indivíduos no nosso trabalho. Mas contraditoriamente, o amor é cada vez mais tratado em nossa sociedade frívola e materialista como uma tolice, uma perda de tempo. Vale como negócio. E a dor que às vezes o acompanha, nem se fala. “A Sandra? Tá lá chorando por causa de homem, aquela idiota, ao invés de partir pra outra.” Versão masculina: “O Paulo, olha, um bobo, tá bebendo todas depois que levou o fora da fulana, com tanta mulher no mundo”. Não é assim? Fazemos troça da dor de amor dos outros. Pimenta no dos outros... Sofrer por alguém é pequeno, inconveniente, inoportuno. O cara fica chato. Ficar é legal, transar é o canal. Mas amar, bem isso já é mais complicado para essa gente criada na civilização capitalista, onde as pessoas se usam como coisas e se gastam como máquinas. Pra amar é preciso entrega, doação, algo que não combina com esse tempo que vivemos. O lema é: eu me amo e o outro eu desfruto. Se não vejamos o que é o ficar. Nada mais que um teste-drive. A gente dá uma pilotada no outro, prova um pouco do gosto, pisa um pouco mais fundo, dá uma verificada no motor, faz um balanço da potência... E vai contar pros outros. E vai pro próximo teste-drive. E o transar? Bem esse é o grande lance, desde que a mídia disse para todos que só o sexo e o dinheiro trazem a felicidade.
E se o capitalismo nos fez acreditar que tempo é dinheiro, a cultura aí gerada nos diz que tempo é prazer também. Quer dizer, temos pouco tempo pra gozar tudo e aí não cabe ficar chorando por dor de cotovelo, abandono, cornice. A coisa foi sacramentada já na frase de Luana Piovani, uma de nossas grandes filósofas atuais: “A fila anda”. Um sistema que prioriza o ter ao ser, só pode medir a felicidade pela quantidade de parceiros que se teve/tem, e não pela qualidade das relações; pela quantidade de orgasmos e não pela qualidade. Além do que, o amor é subversivo. Sempre que ele irrompe no coração de uma pessoa, ele imediatamente causa estranheza, incomoda o mundo. O apaixonado vive num outro planeta, a vida lhe fica diferente. E a sociedade gosta do igual, do mesmo, não do diferente. Octávio Paz, num belo texto do livro Labirinto da solidão, diz que “no nosso mundo o amor é experiência quase inaceitável”. E na verdade, todo tipo de amor é viável. Não existe amor impossível. O fato de existir um amor impossível já diz que ele é possível, pois que aconteceu. O que existe é a sociedade e seus impedimentos. Branco com preta, baixo com alta, velho com moça, cristão com muçulmana, homem com homem, mulher com mulher - todo tipo de amor é possível e se realiza, porque é da essência do amor se realizar. Mas porque a sociedade não gosta do amor? Porque, com raiz no diferente, ele rompe com as regras. De novo Octávio Paz: “[...]. A sociedade concebe o amor, contra a natureza desse sentimento, como uma união estável e destinada a criar filhos. Identifica-o com o casamento. [...] Daí também que o amor seja, sem se propor a isso, um ato anti-social, pois cada vez que consegue ser realizado, viola o casamento e o transforma no que a sociedade não quer que ele seja: a revelação de duas solidões que criam para si mesmas um mundo, que quebra a mentira social, suprime o tempo e o trabalho e se declara auto-suficiente.” Vejamos a publicidade, o cinema, as novelas, as letras de música (e não preciso nem citar as obras-primas do forró). Eles excitam as pessoas, erotizam o mundo, passando uma tesão e um espírito de aventura e gozo que as pessoas não tem, mas são iludidas a ter. Quando que a mídia enaltece o amor? Nas grandes datas comerciais: dia das mães, dos pais, natal... De resto é muita mulher pelada, cervejada na praia, carro potente pra conseguir mais teste-drive - não no carro, claro. E aí duas pessoas se apaixonam e fogem desse mundo, mergulham no deles. E logo vem a sociedade para domesticar essa rebeldia – tem que se acalmar, namorar, noivar, casar, ter filhos e, enfim, domesticar-se na vidinha doméstica. E depois ficar cinza olhando o álbum esmaecido de fotos do tempo dos sonhos, das loucurinhas, das escapadas. Ou então tem que acabar a relação.
Se o amor precisa ser domado, aquietado, logo a dor do amor precisa ser desprezada. São Paulo dizia que o melhor era não casar, “mas se arder, então que se case”, mas sem muito fogo. Era preciso segurar s fúria da carne. Hoje, amar é bobo e perda de tempo. E como tempo é dinheiro, e o consumo berra aos nossos ouvidos “transe, transe, transe”, lá vamos nós, buscando uma felicidade cada vez mais distante. Sem direito a amar de verdade, muito menos sofrer de amor, que tudo bem, não é a melhor coisa (já falei disso), mas é digamos, um nobre direito de quem ousou amar e romper.

O medo de amar

Quem já passou por essa vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu (...)
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer
Ai de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdão.
Vinicius de Moraes


Domingo, 8h. Depois de uma discussão com o marido, ainda na cama, Joana levantou, tomou uma dose de uísque, puxou uma cadeira para a varanda, subiu e saltou para a morte. Linda, 20 anos, casada havia dois anos, ela não suportou a decisão dele, 28 anos, de se separar. Precipitadamente, as pessoas julgam que Joana se matou por amor. Não foi bem assim. Essa história começou anos antes, quando era criança e seus pais se separaram. Ela, super ligada ao pai, nunca aceitou aquilo, nunca o perdoou por tê-la deixado, e teve uma relação tumultuada com ele, a partir dali. A ruptura dos pais e principalmente a negação do amor do pai, pelo menos na intensidade e presencialidade exigida por Joana, marcaram-na para sempre. Ela se transformou numa border line, seres marcados por rupturas e que pululam aos milhões por aí, com sua instabilidade de humor, tédio, sentimentos autodestrutivos e, claro, dificuldades na realização amorosa. O border line vive situações-limite, não raro à beira do abismo. Joana não viveu o amor de forma plena na infância e bloqueou-se em relação a ele. O amor virou um fantasma no seu inconsciente e ela passou sua breve existência sem se entregar ao amor de ninguém, à confiança de ninguém, exceto daquele que lhe seria um substituto do pai. E este lhe fugiu, como o outro. Rupturas demais. Ela se matou não propriamente por amor, mas por medo do amor, esse sentimento de entrega e integração que lhe era tão difícil.
Saindo da tragédia da vida real e entrando na fantasia da tela, o filme Eu odeio Dia dos Namorados, uma comédia romântica de Nia Vardalos, lançada esse ano, mostra um quadro interessante para esse papo aqui. Genevieve é uma florista que não quer envolvimento. Todos os seus relacionamentos não passam do quinto encontro, para evitar que surja o amor e, daí, sofrimento. Ela jura que assim é feliz. Até, claro, que aparece um bonitão que a faz querer o sexto encontro, o sétimo... E ele para no quinto, conforme o combinado. Só então ela descobre que não queria amar para não sofrer o que sua mãe sofrera com as traições de seu pai. Ela diz para si mesma: “nenhum homem vai me fazer sofrer como mamãe sofreu”.
Voltando à vida vivida, Fernando amou muito Raquel e quebrou a cara. Romântico e apaixonado, era do tipo que ainda manda flores, estende tapetes com toalhas, bermudas e meias, e compra nuvem para passear com seu amor. Pessoas assim, geralmente encontram pessoas não-assim. Resultado: agora ele foge do amor. Só ‘fica’, e jura que é feliz com essa “solidão de mão em mão”, como toca uma música por aí. Se ele continuasse a buscar a mulher para viver um grande amor, talvez no próximo se desse pior ainda. E no terceiro encontrasse alguém que curtisse flores, tapetes e nuvens. Falando em música, Beto Guedes canta faz quase 25 anos que “o medo de amar é o medo de ser livre para o que der e vier”, e o Forró do Muído toca nas rádios daqui dizendo “tá com medo de amar, é? Tá com medo do amor, e aí? Deixa a página virar”.
Enfim, o ponto. Morremos de medo de amar. E os motivos são vários, como vimos. Podem vir isolados, ou misturados. Resumindo, não queremos amar porque já sofremos muito por amor e assim, acovardados, perdemos o melhor da festa, como Fernando. Também não queremos amar, embora na maioria das vezes nem tenhamos consciência disso, porque nossas histórias familiares contam com perdas, rupturas e ‘faltas’ de amor, tal como Joana. Se não tive amor quando criança, como vou lidar com esse sentimento agora que cresci (pelo menos por fora)? Se nunca andei de bicicleta antes, como vou saber andar de bicicleta agora? Logo, passo a não gostar de bicicleta, tiro-a da minha vida. E também não queremos amar porque, esse tempo egoísta, narcisista, individualista que vivemos, nos grita que o grande barato é a emoção, a intensidade das paixonites, a quantidade dos “ficares”, sem alma no meio, assim meio como a Genevieve do filme ali atrás. Amores líquidos, como definiu Bauman no livro com esse nome. E como ele escreveu: “a solidão por trás da porta fechada de um quarto com um telefone celular à mão pode parecer uma condição menos arriscada e mais segura do que compartilhar um terreno doméstico comum”.
O filósofo francês Michel Lacroix, à propósito, num belo livro do ano passado, O culto da emoção, nos alerta que vivemos a era do grito e não do suspiro, da emoção-choque e não da contemplação. Buscamos, desesperadamente, viver emoções, seja nos filmes violentos, nos esportes radicais, nos relacionamentos tão loucos e intensos quanto rápidos.. . que acabamos ficando insensíveis. Mais ou menos como o astronauta que voando a milhares de quilômetros por hora tem a sensação de estar parado. Não amando, seja por qual motivo for, e vivendo uma vida covarde, mutante, cheia de emoções baratas e baldias, cama em cama, bar em bar, corpo em corpo – e pretensamente feliz - parecemos com o camarada que diante de um banquete, se empanturra com as entradas e não chega ao prato principal. No máximo vai beliscar a sobremesa.

O luxo do centro

Teatro José de Alencar, sábado. Lá dentro a música, pra mim a mais bela manifestação do gênio humano, explodia em vozes, instrumentos e boniteza. Teatro José de Alencar, sábado. Lá fora, o lixo, o lixo material e o lixo humano davam outro espetáculo, muito mais espetacular. Dentro, vozes afinadas dedilhavam almas sensíveis. Quase se ouvia o suspiro das pessoas que assistiam. Fora, roncos desencontrados de quem dorme torto num banco de pedra feito pra sentar, como as confortáveis poltronas lá de dentro. Lá dentro, uma mistura de perfumes dava ao ar um cheiro de leveza, de limpeza, um cheiro de mulher saindo do banho, de mulher saindo. Os cheiros se misturavam como aquele leve burburinho que ouvimos, quando a vida, com surpresa e encanto, nos depara com algo agradável, bom. Lá fora os cheiros de lixo, de mijo, de um mundo doente, pobre, feio, sujo, de gente que nunca toma banho, de gente pra quem a arte está em chegar ao dia seguinte. Lá dentro a música levava ao sonho, à fantasia, ao enlevo que só a arte é capaz. Fora, o sonho estava no sono mal dormido, perturbado por aquele ‘barulho,’ e aquecia pratos de comida e preparava camas macias.
A música que vazava para a rua era basicamente popular. Seria ideal, nesse cenário, que se tocasse a Nona de Bethoveen, pra mim a maior criação de um ser humano, se é que Bethoveen foi realmente um ser humano. Ou ainda Trois Gymnopédies, de Satie, pra mim o mais maluco, irreverente e sensível compositor. Seria perfeito: o máximo da beleza e o máximo da feiúra.
Duvido que mesmo na Índia se veja um cenário desses. Antes, as pessoas saindo de seus carros também lavados e brilhantes para o show - como os corpos e pescoços das mulheres -, desviam dos que dormem no chão, das latas, dos papéis que rolam... O luxo desvia do lixo. Mas o perfume não supera o mau cheiro.
Saio no meio do show tocado pela emoção e fico caminhando pelos jardins. Atendo o chamado do Carlton vermelho e opto por mais uns momentos daquele outro espetáculo, na verdade um show assustador da injustiça e da indiferença humanas. Penso no ícone da cultura, da arte e do status cearense mergulhado na triste verdade desse país. Escuto um mendigo deitado rosnar para si mesmo: ‘que horas vai terminar essa zoera?”
La dentro alguém canta “We are the champions”. Aqui fora se poderia fazer o coro: “e nós somos os perdedores”.
Lá dentro as cortinas se fecham. Aplausos para o melhor do ser humano. Aqui fora, céu aberto, o espetáculo continua, hoje e todas as noites, com o pior que conseguimos fazer.