quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

VIRGINDADE DÁ CÂNCER


 Sandra, uma jovem universitária de 19 anos não conseguia mais conviver com a sua virgindade. A cada segunda-feira ela inventava para as suas amigas, todas na faixa de 18-20 anos, histórias sensuais e sexuais, que vivera no final de semana. As amigas ouviam entusiasmadas e logo contavam as suas aventuras e performances também. Sandra fantasiava, para não dizer mentia. Assim como as amigas acreditavam nela, ela também acreditava nas amigas. Mas aquela situação lhe incomodava. Na verdade, ser virgem não lhe incomodava, íntima e individualmente. Ser virgem lhe incomodava enquanto pessoa no mundo, isto é, enquanto pessoa em relação com o mundo que não era mais virgem, um mundo que não via mais na virgindade um valor; pelo contrário, um mundo que zombava da virgindade com frases do tipo “virgindade dá câncer” e “virgem, eu? Só no signo, graças a Deus”. Todo o domingo à noite, Sandra ao deitar ficava elucubrando as histórias que narraria no dia seguinte. Até que, em conversa com uma rara amiga conhecedora de seu “problema”, e que morava em outra cidade para estudar, resolvera armar um plano para acabar de vez com aquela situação. Sandra iria passar o final de semana com a amiga e na noite de sábado mesmo acabaria com aquela realidade, acabaria com a sua virgindade. E assim aconteceu. Lá foi ela para o apartamento da amiga. Antes de deixarem o apartamento onde a amiga morava e irem pra balada, arrumaram a cama com o melhor lençol, colocaram champanhe na geladeira e deixaram de prontidão um cd de música suave. Só faltava escolher entre os desconhecidos que perambulavam pela noite, entre copos e olhares, aquele corpo que faria para sempre parte de sua vida e que ela, a poucas horas de um acontecimento tão marcante, desconhecia quem fosse.
E assim se deu. Na descontração juvenil que reveste a noite, onde os corpos falam muito mais do que as falas, ou seja, onde o olho é muito mais importante do que o ouvido, e os hormônios valem muito mais do que os neurônios, encontrou um jovem bonito fisicamente, universitário como ela, e com algum assunto. Ficou com ele até certa hora e depois foram para o apartamento da amiga. Na segunda-feira, finalmente, ela pode contar uma história real, omitidos, claro, os detalhes da timidez, da insegurança e do desprazer. Mas isso não importava. O que importava era que finalmente ela estava inserida no mundo, tal qual o mundo pedia. Como sujeito, ela se sujeitara ao mundo. E o que podia ser uma vivência rica em afeto e troca, ficou sendo um ritual de acasalamento para inserção social.

A pergunta que fica: Sandra é dona do seu corpo? Ou antes: Sandra é dona dos seus pensamentos? Me assusta o modo fácil com que as pessoas entram nas modas e modos impostos pelo mundo, sem a menor reflexão. Ainda mais nesses tempos da deusa Mídia. Minha avó casou virgem, passou a vida servindo o marido, a quem disse que aprendeu a amar, dormiu com esse único homem mais de 50 anos e jamais teve um orgasmo, que ela achava “isso de sexo uma nojeira e sem-vergonhice”. Morta há pouco, achava as jovens de hoje umas perdidas, que casavam por amor e separavam logo depois. Cada um é filho do seu tempo, sem dúvida. Ou vítima do seu tempo, melhor. Minha vó só estudou até a terceira série, porque mulher não precisava estudar. Seu irmão se formou em direito e foi grande advogado, porque era homem. E hoje, com toda a informação e a possibilidade de conhecimento dada às mulheres, não consigo saber quem foi menos ela mesma, quem foi mais vítima do seu tempo, minha vó ou Sandra? Quem mais perdida, no sentido de viver a vida que o mundo manda e não a sua? Sei não, mas desconfio que Sandra seja mais pobre diabo.  

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

ONDE ESTÁ O PARAÍSO?


A felicidade pode estar em duas pessoas saboreando o mais simples café preto com pão com margarina dividido com olhares, delicadezas e mesmo o não falar, porque como disse Mário Quintana “amizade é quando o silencio não se torna incômodo. Amor, é quando o silencio se torna cômodo”.


O paraíso pode não estar numa praia maravilhosa, água azul, uma rede entre dois coqueiros, nuvens raras de algodão passeando pelo céu. O paraíso pode estar num quarto simples de hotel de beira de estrada, apenas com um ar-condicionado a 17 graus e onde duas pessoas se aquecem e esquecem do mundo lá fora, mergulhados num edredom. O paraíso está em duas pessoas. O paraíso não está no sexo performático, exibição de técnica e resistência. Ele está no aconchego dos corpos, no fazer amor do cotidiano, de corpos que se conhecem e se amam, na leveza do toque que acaricia também a alma. O paraíso está muito mais no suspiro, do que na exclamação. O paraíso está em duas pessoas!
A felicidade não está num jantar refinado, com copos, talheres finos e mãos que dançam entre eles. A felicidade pode estar em duas pessoas saboreando o mais simples café preto com pão com margarina dividido com olhares, delicadezas e mesmo o não falar, porque como disse Mário Quintana “amizade é quando o silencio não se torna incômodo. Amor, é quando o silencio se torna cômodo”.
A felicidade pode estar apenas em andar de mãos dadas sem pressa a esmo por uma rua feia, cheia de pessoas tristes e cães vagabundos vagando - uma rua q se faz linda. A felicidade está em duas pessoas.

A felicidade não está em construir uma grande casa, casa é feita de pedra e o tempo destrói. A felicidade é construir dentro da gente um lugar sereno e amoroso, com almofadinhas confortáveis, cama de nuvem, pra se aconchegar e amar o nosso amor. A felicidade é feita de sentimento, que o tempo não destrói. A felicidade está em duas pessoas. E só nessas duas. As outras são figurantes, espectadores da consumação de um projeto chamado paraíso, ou melhor, um projeto chamado duas pessoas.

sábado, 23 de janeiro de 2016

Nesse carnaval não beije na boca



“Eu quero mais é beijar na boca!”, grita um dos muitos clones de cantora de trio elétrico que infestam nossa mídia e nossas ruas. Faça não. Nesse carnaval não beije muuuito na boca. De preferência, nem beije. De preferência, beije a quem você ama, se tiver, mas não o estranho com a alegria enlatada na mão e os olhos injetados de multidão. Mas de preferência mesmo, beije você mesmo.
Se você não vai viajar, então, ótimo. Não diga “que saco! vou ficar na cidade”. Aproveite para viajar com você, pra dentro de você. Há quanto tempo você não caminha de mãos dadas com você? Há quanto tempo não se afaga? Há quanto tempo não se curte e não se encanta com você mesmo? Há quanto tempo sem tempo pra você? Se não viajar, navegue pra aquele lugar mais dentro do seu mar e descubra lá longe suas praias isoladas, suas areias desertas, seus lugares inacessíveis até mesmo pra você. Tem tanto recanto bonito dentro de você! Fizeram você acreditar que é igual a todos, igual à massa. Não é! Você é um ser único, só que talvez nunca tenha se apresentado a você!
E se for viajar pra um lugar de muita festa, saia um dia só com você, sem bebida, sem amigo, sem amor (velho ou novo) e se misture com a massa. Olhe como as pessoas riem, bebem, pulam, numa corrente elétrica de alegria e euforia que é da massa, não é de cada um. E que essa alegria toda te lembre o verso cantado por Frejat “que rir é bom, mas que rir de tudo é desespero”. Pense naquela “felicidade” toda ali. Então perceba que todos são um e que cada um é ninguém. Mas que você está fora disso, você está de fora, olhando os outros e se percebendo único ali. Ali, só você é você. Escolha dois que se beijam loucamente. É fácil achar. Eles estão perdidos ali. Pense que não são eles que se beijam. É a massa que vive neles que se beija, essa loucura chamada carnaval, que deixou de emanar do popular, capturada que foi pela mídia e pelas secretarias de turismo, pra ganhar dinheiro, enlouquecendo o que Freud chamou de nosso instinto de vida (pra esquecer a morte). E dê um grande beijo pra dentro de você. Volte pra casa feliz, abraçado com você, ser único, fora da massa que é um e não é ninguém, repito.
E chegando em casa, se você estiver com alguém, olhe pra essa pessoa por uns minutos e pense quem é ela na sua vida. Ela é a sua vida? E se ela perguntar : “porque você está me olhando?”, responda: “estou olhando pra mim”. E reflita que você só vive uma vida, pelo menos aqui por essas bandas terrestres, e que partilhá-la com quem não é parte de você é assinar o seu atestado de hábito, ou de óbito, não sei a diferença. Chame o “síndico do seu tédio” e se reinvente. Pense que é na volta das férias que acontece a maioria dos rompimentos. Que os cartórios batem os recordes anuais de pedidos de separação nessa época em que a gente retorna do convívio com o outro – marido, esposa, namorado, namorada - e descobre que vive em solidão a dois.
Se ficar em casa, não ligue a televisão naquela profusão de corpos malhados à bisturi, de gente que já não tinha mais sua alma e agora não tem também mais o seu corpo. De preferência não ligue a televisão. De preferência não ligue nada. Fique no silêncio de você. Faça um ”silêncio do vizinho reclamar”. E se escute. Ouça a música do seu viver. Suas torneiras, suas chaleiras e panelas, seus ventos na varanda, seus suspiros. Melhor que a melhor batucada.
Se ficar em casa, aproveite para ir a uma livraria e escolher um bom livro que não seja best seller. Esqueça as cabanas da vida, os comer, rezar e amar e busque um autor que não seja de massa. Não vou sugerir nomes. Têm muitos. Nem aceite sugestões de vendedor, nem de ninguém. Arrisque-se e viva momentos bonitos de você mesmo, descobrindo algo que a mídia não lhe mandou descobrir... e que você vai amar, até por isso. Você vai se amar se sentindo mais único do que nunca. E pense no que disse o filósofo alemão Adorno, “que para algumas pessoas dizer ‘eu’ chega a ser um absurdo”.
Enfim, se algo assim acontecer com você nesse carnaval, tenha certeza que você fez um carnaval espetacular. Você foi pierrô e colombina de você mesmo. Montou um trio elétrico dentro de você. Pulou por dentro. Sua alma cantou como nunca. Seu coração bateu mais forte que os tambores. Você fez folia em sua vida. E o ano, enfim, começará novo pra você. Já os outros, voltarão esgotados e felizes em bandos de gente, bandos de carros, bandos de ônibus e aviões pra viverem suas vidas, em bandos. Felizes de alma? Viverem suas vidas mesmo? Bem, vamos ler tudo de novo!



sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Românticos são loucos




Leio Vinícius, Pessoa, compro livros de poesia. Meu Deus!, eu compro livros de poesia!! Tem algo mais anacrônico do que comprar livros de poesia, quando todos lêem manuais de felicidade prêt-à-porter e lições de como enlouquecer o outro na cama ou ficar rico em 10 lições?


Nasci com um defeito de fábrica – nasci com sonhos que não são mais sonhados. Nasci romântico num mundo que não é mais romântico. Nasci com um defeito de fábrica que não tem conserto. Dois corações, três almas. Se como disse Pessoa “quem tem alma não tem calma”, imagina eu, que me debato dentro de mim, que me transbordo. Românticos são loucos, românticos são poucos, diz a letra de um raro talento surgido ultimamente na MPB, Vander Lee. Sou dos loucos, sou dos poucos “que querem ser o outro, que pensam que o outro é o paraíso”.
Sei que tudo acaba, é a regra, mas continuo acreditando num grande amor pra toda vida e mais um dia como a exceção pra confirmar a regra. Fico desencantado com os jovens e sua lucidez prática do prazer momentâneo, da emoção barata, engarrafada, e com o medo de sofrer. Sou como Vander Lee, dos que
mesmo certos vão pedir perdão/ que passam a noite em claro/ conhecem o gosto raro/De amar sem medo de outra desilusão...

Amo o amor, amo amar e me sinto fora de compasso. Amo deitar e não dormir, ficar pensando nela. Amo acordar, e andar com ela no pensamento. Amo aquele suor na mão, aquele coração acelerado, o ouvido que só tem ouvidos pro telefone que toca-não-toca, e me sinto fora do eixo do mundo.
Gosto de puxar cadeira, mas as mulheres parece que não gostam mais disso e vivem puxando o meu tapete. Gosto de abrir portas, mas as mulheres parecem também não gostar disso e tenho levado muitas na cara. Amo fazer amor: pétalas na cama, bilhetinhos espalhados... mas as mulheres preferem transar (pra não usar um verbo mais forte) e, no outro dia, sem telefonema, sem flores. A fila andou.Nasci com um defeito de fábrica. Nasci romântico num mundo que não é mais romântico. Nasci num tempo errado. Por isso ando errado pelo mundo, com conta em floricultura quando elas atendem mesmo é velórios e congressos; com olhar nas estrelas, quando elas brilham mesmo é pra cientistas descobrirem novas galáxias. Leio Vinícius, Pessoa, compro livros de poesia. Meu Deus!, eu compro livros de poesia!! Tem algo mais anacrônico do que comprar livros de poesia, quando todos lêem manuais de felicidade prêt-à-porter e lições de como enlouquecer o outro na cama ou ficar rico em 10 lições?
Sou meditabundo, e até a palavra é feia. Sou preguiçoso; copiando o nick de uma amiga “tenho preguiça de ser sério” . Malemolente, lento, num tempo de pressa e agilidade competente. Curto quando o sinal fecha pra poder olhar pros lados e ver carros, caras, cores. Gosto quando falta luz e a escuridão de velas me mergulha num mundo de sombras, medos da infância, quando a competência da tecnologia não era tão competente e nos dava cotas de fantasia. Não gosto de fast food . Sou slow food, o último a terminar de comer. Odeio as rapidinhas, gosto das demoradoooooonas. Sou contemplativo e vejo que o mundo me contempla como um ET.
Nasci com um defeito de fábrica. Nasci fora do tempo. Meu tempo é outro. Mas vivo agora, o que fazer? Me resta encarar como Drummond, que escreveu:
"Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida."

Vai, Capa!










quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

As caras da cidade


Uma cena triste de se ver ao andar por essa cidade (leia-se qualquer cidade) é a cara das pessoas nas paradas de ônibus. Triste não é uma palavra que defina bem esse sentimento. Melhor é a expressão borocoxô. Aliás, a palavra triste não é triste, mas borocoxô é isso mesmo: borocoxô. O dicionário diz “borocoxô - que está sem ânimo, sem energia; que está alquebrado, envelhecido, que está amuado, aborrecido”. E não é isso que vemos nas caras das pessoas que esperam ônibus? É que esperar, seja o que for, já não é legal; esperar ônibus, pior ainda; mas esperar em Fortaleza, quer dizer, sabendo onde vai entrar... isso merece um outro texto.
Mas tem coisa ainda mais borocoxô do que a cara de paisagem de quem fica plantado num abrigo esperando o ônibus. É a cara de quem passa de ônibus. Aquela cara que vemos passando rapidamente quando vamos atravessar a rua, ou, lei da compensação, quando estamos na parada esperando. Cara de natureza morta.
Outra cara para o catálogo das mais danadas – cara de consultório (qualquer consultório). Aquele monte de gente estranha, que entre uma revista Caras, sem capa, e outra, sem capa de novo, volta e meia olha para as caras em torno. A gente olha e fica pensando, “o que será que essa criatura tem?” Ou então se perde a olhar o pé da mulher da frente, bem feito... bem feio... ou o cabelo daquela outra, filosofando sobre qual o nome que a fábrica da tintura deu aquele tom; ou a gente se liga tentando ouvir a conversa daquelas duas senhoras falando algo empolgante sobre seus filhos ou sobre um novo ponto de crochê. Isso mesmo, crochê, sabe o que é? É que a gente naquele mundinho busca assuntos adormecidos que acordam no torpor do consultório. Mas o melhor mesmo é olhar as caras. Bom não levar espelho.
Outra cara que dói: cara de elevador. Aí não é só a cara, claro. É a situação toda que incomoda. A invasão do território da gente. A ciência diz que temos em torno de nós uma faixa de 1m a 1,5m,que invadida, nos constrange. É o nosso espaço, o nosso território. Aí a gente fica ali sendo invadido no nosso cheiro, na nossa caspa, nas nossas manchas, e invadindo o território dos outros.

Mas o pior das caras que já vi, foi numa exame de fertilidade que fiz; o exame se chama espermograma. Imagine uns oito homens sentados em um banquinho, todos fazendo porra nenhuma a não ser esperar a hora em que serão chamados para justamente coletar... No meu caso existia um só local para coleta do material: um banheiro. A cada um que entrava a gente ficava controlando quanto tempo o camarada levava para ejacular, de olhos abertos e fazendo pontaria num pote que nem em um ano ele encheria. Bem, a cara do sujeito quando saia do banheiro com o material coletado com as próprias mãos era de dar dó. Aquele minguadinho no vidro, os olhares dos outros homens na espera de fazer sua parte, a entrega para as moças do balcão... Taí uma cara que não desejo pra ninguém. Cara de pau ao contrário.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Chuva na alma



Chove. Fraquinho, mas chove. E a vida fica perfeita quando me sobe um cheiro de café forte do apartamento daquela mulher que mora sozinha com seu cachorro. Fico imaginando ela tomando café, contemplando a chuva pela janela enquanto seu cachorro fica sentado olhando a cena e de repente espirra. A chuva tem poder! Não falo das catástrofes, tampouco dos resfriados. Falo desse sentimento que ela nos cria. Essa umidadezinha que parece que borrifa nossa alma e lhe tira um pouco da secura que a vida, dura e sem sentido que levamos, instala nela. Esse cheiro de terra, que nos remete, inconscientemente, atavicamente, a um passado muito distante de quando ainda corríamos pelos campos e pradarias atrás de alces e gazelas e vivíamos com os pés fincados nela e dormíamos sentindo seu coração. Esse cheiro de água, que não tem cheiro, dizem, mas que a gente sabe que tem - cheiro de lembrança. É um cheiro que traz à memória momentos bonitos, amargos, alegres, tristes... momentos. Pense e você vai encontrar momentos inesquecíveis marcados pela chuva! A água repentina que caiu quando você chegava em alto estilo numa cerimônia de luxo. A tarde em que chovia muito e você amou inesquecivelmente aquela pessoa que fez folia em seu corpo, cujos exércitos invadiram o seu país e correu da sua vida sem dizer com que pernas você devia seguir. A batida no trânsito, por culpa do asfalto molhado. O dia aquele em que sua adolescência ganhou o primeiro "eu te amo" escrito num vidro embaçado. Escolha um momento de tantos e cante a chuva, que ela merece todo o canto e louvor.
Eu me lembro aqui de dois momentos. Um, eu tinha sete anos e ia pra escola. Naquele tempo a gente usava capa-de-chuva, galocha e, ainda, guarda-chuva. A gente se preparava pra enfrentar a chuva. Mas nessa manhã eu não tinha saído nem de capa, nem de galocha, nem de guarda-chuva, porque minha mãe achou que não fosse chover. Às vezes ela errava, como errou prevendo que eu seria um grande homem, muito rico e importante. Naquele dia, quando me deparei com a chuva, a saída foi saltitar entre uma marquise e outra. Mas quando cheguei na quadra da escola, surpresa: não tinha mais marquise na rua. E cheguei todo molhado. E pior: molhei o caderno de caligrafia que eu amava. Chorei e para sempre me lembrarei da chuva batendo no meu rosto, se misturando com as lágrimas, uma cena que se repetiu muitas vezes depois... chuva e lágrimas. A gente passa a vida pulando de uma marquise pra outra, sai pra chuva sem capa nem nada e não quer se molhar. Mas não adianta. A gente acaba perdendo o emprego de que gostava tanto ou precisava muito. A gente tenta não sofrer, tenta até não amar. Mas não adianta, um dia o coração acelera, a alma dilacera. Um dia fica só, sentado na calçada do mundo. Um dia, enfim, não tem marquise e a gente se molha e molha o caderno de caligrafia. A outra lembrança é de uma madrugada em que eu e Manon, uma moça tão linda como é raro seu nome, esperávamos táxi na esquina da minha casa. Eram 4h. De repente, chuva. Eu, elegantemente, tirei minha jaqueta jeans e armei uma proteção para nós. Ficamos bem juntinhos. Eu sentia o perfume do seu corpo, seu cabelo me roçava, seu hálito de vinho misturado com chiclete acariciava minha emoção. Naquela noite tínhamos saído para jantar. Bebemos, fomos para o meu aparamento, bebemos, conversamos muito, rimos muito. E foi só. E estranhamente foi uma noite inesquecível, porque não acontecendo nada, aconteceu tudo. Das outras que aconteceu tudo, não lembro nada. Nunca mais vi Manon, mas ela viverá pra sempre em mim. Porque não acontecendo nada, aconteceu tudo. E porque chovia.