segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Natal, shopping e Cristo (ou "Comprai-vos uns aos outros")

Se um grego viajasse no tempo e caísse num shopping, ele se sentiria extremamente feliz. Ainda mais se fosse nessa época natalina. Ao ver aqueles milhares de produtos à venda, e vendo aquelas pessoas se batendo desesperadamente, correndo atrás de presentes, bens materiais, para si ou para os outros, ele bateria no peito e diria para si mesmo, orgulhoso: “Como eu sou livre, como eu não preciso de nada disso!” Já os livres homens e mulheres de hoje, olhando tudo aquilo de cima, diriam: “Meu Deus! Como eu sou infeliz, eu queria comprar tudo isso!” É, o homo consumens é de outra ordem, de outro planeta – o planeta onde você pra mostrar que gosta de alguém tem que dar um presente, algo que materialize seu afeto, seu amor. Só palavra, só gesto não vale. E quanto mais caro o presente mais seu sentimento é mostrado. Não dar nada para alguém próximo, nem uma lembrancinha, equivale a dizer “você não é importante pra mim”. E isso justamente na data em que se comemora o nascimento do sujeito que pregou que a matéria, a riqueza, não são importantes; justo o cara que escolheu os lascados, os que não tinham como comprar presentes, para dentre eles fomentar sua fé, fazer sua pregação de um outro mundo aqui e agora, um mundo onde o amor era o valor mais alto.
Imagino Cristo chegando num shopping hoje. E imagino que, tal como fez a frente do templo de Jerusalém, onde os vendilhões vendiam tudo, bois, pombas, e agiotas trocavam siclos judaicos por dracmas gregas e denários romanos, Ele começaria a derrubar as prateleiras. Lá, dois mil e nove anos atrás, Ele gritou: “ Tirai tudo isto daqui; não façais da casa de meu Pai casa de comércio". E aqui talvez gritasse: “Pai, eles fizeram tudo ao contrário do que eu disse. Dêem-se uns aos outros em alma e coração e não pedaços de matéria, não em dinheiro”. Sem dúvida, a competente segurança do shopping trataria logo de segurar e prender esse baderneiro que ousava perturbar as compras dos cristãos e ofender o mais puro espírito natalino.
Não sou cristão fervoroso, esclareça-se, mas acho a mensagem de Cristo a mais linda, audaciosa e perfeita que alguém já fez aqui pelo planetinha azul. E fico com pena das criaturas que se acotovelam, se esfalfam, se estressam para mostrar seu amor... com coisas que falem por elas. Passeio pelo shopping e vejo balconistas verdes, com olheiras que me lembram Zé Colmeia, com seus sorrisos entre o cansado e o forçado, cultivando em pé suas varizes e vendo em cada pessoa que entra na loja apenas um percentual no fim do mês. É o Natal cristão! Vejo casais esbaforidos, estressados, divididos entre não perder os filhos, não bater as sacolas e decidir os últimos – ufa! – presentes. Vejo as pessoas verem o outro apenas como uma coisa que lhe atrapalha andar mais rápido e encerrar logo as compras. É o Natal cristão! Vejo uma multidão perdida entre cuecas e meias, livros e CDs, panetones e perus. Enquanto isso o amor despojado jaz atirado numa prateleira poeirenta. Enquanto isso, o abraço sincero, o beijo limpo que traduz o melhor sentimento, a palavra pura que traduz a verdadeira emoção, jazem no fundo de cada um. E o camarada aquele de quem se comemora o nascimento, jaz atirado no esquecimento de uma gente que precisa gastar, precisa comprar pra dar provas de amor; uma gente que tem a vitrine como altar, no dinheiro sua benção e no shopping seu novo templo, sua nova igreja. “Comprai-vos uns aos outros”, não foi o que Ele disse? Oremos, então. Ou melhor, compremos!

sábado, 12 de dezembro de 2009

A cantora nua

Imagine a cena. Corpos nus sobre a cama desarrumada, roupas pelo chão. Recém refeitos do delírio erótico, do "prazer cumprido", como escreveu Braga, ela deitada sobre o peito dele diz que quer cantar uma música pra ele, porque adora cantar. Ele consente, claro, imaginando que vai ouvir aquela voz que tanto ama cantar algo agradável, falando de amor. Algo como uma declaração, tipo “eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras não sei dizer...”. Ou "eu sei que vou te amar, por toda a minha vida..." Mas é outra a música. E a voz... o que ele ouve lhe coloca em novo êxtase, dessa vez um êxtase estético-espiritual. Simplesmente ela canta divinamente, como ele não imaginara jamais. E aquela voz que a pouco sussurrava e gemia vibrando fisicamente nos seus ouvidos, agora transcendia e lhe tocava espiritualmente do modo mais belo que a alma de alguém possa ser tocada. “Deus, ela canta demais!”, pensou. E agradeceu tê-la encontrado, uma mulher linda, que ainda por cima – na hora, era mesmo por cima – ainda cantava como quase ninguém canta. Era como ter uma Marisa Monte particular.

"O que há dentro do meu coração
Eu tenho guardado pra te dar
E todas as horas que o tempo
Tem pra me conceder
São tuas até morrer"


Os versos de Djavan escorriam pelas paredes e por um momento ele acreditou que o casal do quarto do lado parou de fazer amor pra ouvir a voz do amor que cantava ali sobre ele. E que as camareiras pararam nos corredores para, além dos gemidos dos corpos que se desfrutavam, ouvir o prazer da alma que alça vôo e emana o divino em cada um de nós. E que até o segurança lá da portaria fechou sua revistinha em quadrinhos porque sentiu uma vibração no ar e, súbito, olhou para a lua, que tímida, já desistia de ser percebida na sua palidez diurna.

"E a tua história, eu não sei
Mas me diga só o que for bom
Um amor tão puro que ainda nem sabe
A força que tem
é teu e de mais ninguém"


O que vale nessa vida são os momentos que guardamos. E guardamos os momentos mais importantes, os melhores e os piores. Belchior tem um verso lindo - dentre tantos outros lindos - na canção “Como nossos pais”: “Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais”. Mas tem o outro lado: as lembranças mais bonitas, as lembranças do que nos deu mais prazer, alegria, enlevo e satisfação. E a lembrança dela cantando nua, depois do amor, linda e divinamente, ficara gravada e cravada como das preferidas na parede da minha memória. E chegou a condição de ser o quadro mais bonito. Nesse tempo louco, de culto ao corpo e erotizado, se pensa que sexo é tudo, mais do que amor até. Não é. Sexo é ótimo, amar melhor ainda, os dois juntos são o máximo, mas viver esses momentos que transcendem o corpo e o sentimento e se fundem com o espírito, são o que há de mais maravilhosamente humano. Só nós humanos temos essa qualidade do viver. Só nós humanos temos essa faculdade de se embebedar de beleza, de encharcar a alma de leveza, de encher a cara de êxtase.


"Te adoro em tudo, tudo, tudo
Quero mais que tudo, tudo, tudo
Te amar sem limites
Viver uma grande história
Aqui ou noutro lugar
Que pode ser feio ou bonito
Se nós estivermos juntos
Haverá um céu azul"


A beleza dos versos, a beleza da canção, a beleza dela, a beleza da voz dela, a beleza do momento, tudo aquilo fez com que eu agradecesse à vida, a Deus. Mas as coisas desafinaram. Sua voz não canta mais pra mim. Seu corpo não se deita mais com o meu e provoca orgias de prazer. Seu corpo não se deita mais sobre o meu peito e me deleita com o divino de ouvi-la cantar. E hoje na parede da minha memória essa lembrança é o quadro que dói mais. É o quadro mais triste. Ave Belchior.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Eu sou mesmo exagerado (ou Cazuzando)

Estava em um belo papo sobre o amor com a amiga e professora Tânia Tajra, quando me veio a frase de Cazuza “quero a sorte de um amor tranqüilo, com sabor de fruta mordida”. Quando saí - estava a pé -, resolvi caminhar um pouco pensando no que havíamos conversado, no que eu havia aprendido. Aí me assaltou outra obra de Cazuza: “Exagerado”. Pensei: esse é meu momento Cazuza. É que eu sou mesmo exagerado. E, exagerado, não caminhei só um pouco, caminhei muuuuito.
Exagerado, quando choro, seco. Quando bebo, me encharco. Quando fumo, me esfumaço. Quando gosto de um artista, Chet Baker, por exemplo, não tenho só um disco, tenho todos. O mesmo vale pra Chico Buarque, Elis Regina. Idem para escritores, como Carson McCullers, Fernando Pessoa. Quando era criança colecionava carteiras de cigarros com amigos. Eles tinham 50, 100, eu tinha mais de mil. Eu sou mesmo exagerado. Quando estou alegre, não me caibo; e triste, o mundo se faz pequeno pra tanto cinza.
E quando amo... meu Deus do céu! eu amo todo o amor que houver nessa vida. O amanhecer tem a cara do meu amor, a chuva chove o meu amor. Se eu durmo, é que eu quero sonhar só com ela; e se acordo, é por acaso, porque no sonho ela me ama, e se acordo, é por descuido, por engano.
Quando amo não mando flores, mando a floricultura inteira. E aí quando deito, não durmo, e amo me dar por feliz em perder noites de sono só pra vê-la dormir (que prazer mais egoísta o de cuidar de um outro ser, mesmo se dando mais do que se tem pra receber). E faço promessas malucas, tão curtas quanto um sonho bom.
Não façam o que faço. Mas pra mim, exagerado, carteira de cigarros, Chico Buarque e tudo que amo é motivo de culto, devoção. No amor, então, eu largo tudo: carreira, dinheiro, canudo, até nas coisas mais banais, pra mim é tudo ou nunca mais. Acho até que mereço ganhar pra ser carente profissional, levando em frente um coração dependente, viciado em amar errado.
Exagerado. Quando corro, me exauro. Quando vou ao cinema e amo o filme, assisto três sessões seguidas. Quando amo uma música, o cd player pede água. E quando escrevo, descrevo, porque perco o controle sobre meus dedos e eles correm soltos pelo teclado. Me faço escravo das palavras que me possuem. Sou mesmo exagerado. No amor – sou chato e exagerado em falar dele - quando amo, sinto pena de quem não ama assim e chego a pedir piedade. Que o Senhor dê grandeza e um pouco de coragem pra quem não sabe amar e fica esperando alguém que caiba no seu sonho.
Um dia uma namoradinha da adolescência me disse: “tu és muito exagerado”. Daí pra frente, só piorei. Desde então pequenas poções de ilusão, mentiras sinceras, me interessam cada vez mais.
Caminhando, depois da conversa com Vânia, roubei flores dos canteiros fazendo festinha pra mim mesmo. Um vira-lata começou a me acompanhar. Contei pra ele como eu era. Ele abanou o rabo. Parei e insisti que eu era péssima companhia. Ele sentou. Mandei embora. Ele deitou. Pensei: é irmão. E seguimos lado a lado. Exagerados.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

VOLTEI

Depois de algum tempo, volto a acionar o blog, agora de vez e pra sempre.Perdão aos amigos que vieram aqui e não acharam mais nada.Foi uma parada estratégica, para reabastecimento e revisão geral. Agora, na estrada de novo. Bjs e abraços

Da primeira vez que me matei

(Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...
Mário Quintana)


Da primeira vez que me matei, jurei que nunca mais amaria a ninguém de novo. Digo me matei, porque nunca mais amar é uma forma de se matar. Mas inexperiente nas dores do amor, foi assim. “Nunca mais vou amar”, jurei pra mim mesmo. Juramento em falso. Mas passa o tempo e vem novo amor. Passa o tempo e vem nova dor. Porque esse negócio de amar não é brincadeira não. Eu sou dos raros que ainda acreditam que uma história de amor pode durar pra sempre. Mas parece que essa história do amor eterno é a exceção que confirma a regra de que todo amor acaba, pelo menos de um dos lados. E geralmente não é do meu. Não morro de amores por Julio Iglesias, acho meloso demais, mas uma música dele, chamada Hey, tem um verso que gosto muito: “é sempre mais feliz quem mais amou, e quem mais amou fui eu”. Então, geralmente sou mais feliz. Claro que depois, quando acaba, sou o próprio infeliz. Passo por baixo das portas, odeio ver namorados felizes, dias lindos me entristecem e como Drummond, acho o ponto de exclamação uma aberração. Mas passa. Dali um tempo, olha eu sendo o mais feliz de novo. Mas o que quero dizer aqui é que o amor não passa. Ele se transforma em outra coisa. Às vezes numa mágoa profunda, às vezes numa lembrança meiga, momentos lindos; outras, uma raiva pitibulesca. Porque as pessoas que você amou sempre serão especiais, pro bem ou pro mal. É aquela história: ex é pra sempre. Encontrar alguém que amamos, assim, por acaso num bar, por exemplo, gera em nós, sempre, sentimentos atrapalhados. Se estamos com outra pessoa e se a ex está também com outra pessoa, então a coisa fica mais atrapalhada ainda, e para todos, porque o atual amor odeia o ex-amor do seu amor. Geralmente estraga a festa. Mas não devia ser assim, porque o amor é um só, nossa cota de amar é infinita. Gastamos um pouquinho aqui, outro tanto lá, um montão depois, mas o amor é um só. E nós também levamos sempre pedaços dos amores antigos para o novo. Coisas erradas que fizemos, mentiras, traições, ofensas, posturas, birras e burrices e as coisas boas também, claro: uma novidade no fazer amor, uma comidinha; aperfeiçoamos as DR (sigla da moda para “discutir a relação”), novas canções, filmes...
Eu, do fim da relação que tive (não posso dizer fim do meu amor), posso dizer que aprendi muita coisa. Aprendi que amar é uma merda! e que não quero mais saber de amar a ninguém. Que toda essa conversa aí em cima é muito bonitinha, tem muito de verdade, mas, porra! amar é foda! O que eu quero dizer meeeesmo aqui é que não quero que esse meu amor passe e se transforme em qualquer coisa, quero que volte para o palco e seja maravilhoso, sofrido, alegre, chorado, tesudo, brochado, como foi. Quero os fiascos de novo, quero até as baixarias; quero as trepadas inesquecíveis – brincadeiras de carne da melhor qualidade. Quero as fugas, as surpresas, os choros sem motivo, os choros com muitos motivos. Quero as mentiras ditas com cara de verdade, quero as verdades jogadas na cara, quero roubar flores, puxar cadeira, abrir porta (enfim, ser o babaca de sempre). Quero aquela espera agoniada, que não acaba nunca; aquela partida doída, que leva a dor junto no peito. Quero o beijo de cinema depois da briga, num banco de um velho táxi, enquanto o taxista cantarola uma breguice muito vagabunda. Quero o amor vagabundo, quero o lado puta dela, quero o amor divino, os olhos mostrando a alma. Quero o meu amor de volta. Ou juro que me mato pela segunda vez.

Homem morre de medo de mulher

Os dois chegaram altos da balada, já madrugada. Ela senta na cama e com cara de moleca diz: “tira a roupa e vem cá!” Atendendo a seus instintos e à formação de que deve estar sempre pronto a mostrar serviço, ele se posta diante dela, baixa as calças e... nega fogo. Ela fica frustrada. E ele como fica? Melhor nem falar. Os homens me entendem. As mulheres acham que entendem. Ela, além da frustração e do constrangimento (dizer o quê?), sofre também um sentimento de que não é desejada. Pelo menos naquela hora em que ela desejava tanto. A resposta para o ocorrido é simples. Homem morre de medo de mulher. Mulher assim ousada, então, apavora o macho. As mulheres nem imaginam o quanto os homens as temem. Se pesquisassem um pouco sobre esse pobre ser, saberiam o quanto ele se sente inseguro e literalmente morre de medo delas. E falo isso ao longo dos séculos. Nem precisa complicar vasculhando a psicanálise. É só ir na História. Antes, existia, em várias culturas, o mito da vagina dentada, que dispensa explicações (aliás, a própria palavra ‘vagina’ já é assustadora). Sem falar na Deusa-Mãe. Maiores informações basta ir ao Google. Hoje o homem se sente diminuído e medroso por vários motivos. Dois deles: a capacidade orgástica da mulher, incomparável à dele e comprovada por ele; e a performance da mulherada na cama, igualmente aferida. Falo das mulheres em geral, mas no particular da mulher que na cama se mostre muito solta, tesuda, tomando a iniciativa. Essa é um terror. Por isso que o instituto IMS Health - que audita o setor farmacêutico no Brasil e no mundo – aponta que o Cialis foi o segundo medicamento mais vendido no Brasil no ano passado, só perdendo para o Dorflex. O Cialis, pra quem não sabe, é um remedinho pra não acontecer aquilo com o camarada do início desse texto, e é usado em larga escala, inclusive pelos jovens, por garantia. Só pra complementar, o terceiro medicamento mais vendido é a Neosaldina e o quarto, o Viagra, que dispensam apresentações. Desculpe, mas não resisto ao blague - parece que as cabeças são problema para o brasileiro.
Voltando às mulheres, lembro agora de um amigo que teve seu casamento ameaçado bem por esse motivo da pegada feminina. A mulher tomava a iniciativa sempre e não dava oportunidade a ele de ser agressivo, pegador, homem, enfim, como lhe ensinaram que deveria ser. Não sei como resolveram, se resolveram, mas estão juntos até hoje.
Uma outra amiga, conta que quando foi a um velho e conhecido motel que freqüentava com o ex, se fez de sonsa, como se não entendesse de motel, principalmente daquele. Sentou na cama e olhando aquele console cheio de luzes e botões se fez de maravilhada. Apertava um botão e exclamava: “oh, ascende a luz de cima!” Apertava outro e se extasiava: “olha só, esse é da televisão!” Não demorou e o namorado novinho em folha aterrissou do lado dela e cheio de orgulho e autoridade explicou cada botão, cada luzinha. Tiveram uma noite ótima. E nunca tiveram problemas até onde sei. Outra amiga se botou nas lingeries, preparou uma banheira cheia de sais e espumas, com champanhe, taças e muito clima, para que quando o marido chegasse fizessem uma happy hour realmente happy. Aparentemente muito feliz com a surpresa, ele se refestelou na espuma e enquanto ela buscava uma toalha, ele... dormiu. Psicóloga ela, não tinha dúvidas, me dizia depois, de que o sono foi a fuga que ele encontrou para não enfrentar aquela sessão erótica. Eles tinham esse problema. Ele se sentia seguro no feijão com arroz. Ela gostava de novidades, ousadias, curtia preparar o ambiente e desbravar novos. Estou me sentindo um traidor da raça masculina. A verdade é que não está longe o dia em que o homem vai começar a dizer “hoje, não, amor, tô com uma puta dor de cabeça”, ou “hoje tô estressado, meu bem, me incomodei demais no trabalho”. Logo logo os machos do planeta vão criar o Dia Internacional do Homem, pra defender seus direitos, incluindo o de não estar a fim. E olha que nem falei da paranóia do homem com o tamanho do pinto, agora sujeito à comparações. Isso me lembra um trecho do filme Vinícius, de Miguel Faria Jr, onde Chico Buarque pergunta ao poetinha se ele acreditava em reencarnação e, acreditando, como queria voltar a esse mundo. Vinícius disse que “queria voltar ele mesmo, só com o pinto um pouquinho maior”. E daí linco com uma crônica de Walter Navarro, onde falando do filme e a propósito da frase de Vinicius de Mores, diz que “se não der pra voltar como Vinicius, eu gostaria de voltar como eu mesmo, Walter Navarro, mas com o pinto um pouquinho menor. E menos mentiroso também”. Com essa, só posso pedir: Senhor, tende piedade de nós, homens.

O amor tá por fora

Já escrevi, dia desses, que nossa civilização cristã divinizou o sofrimento e assim passamos a medir o amor pela dor que ele gera e não pela alegria, paz e felicidade que produz. Quem eu mais amei foi aquela por quem eu mais sofri, o que não tem valor de verdade sempre. Quero fazer agora uma outra reflexão. Ainda medimos o amor pela dor, mas há algo novo no ar: a idéia de que sofrer por amor é babaquice. Você sofre, tudo bem, mas o mundo ri de você. Ralar pra ganhar dinheiro, pode; se esfolar nesse esquema competitivo, perverso, sem ética, é a regra. Sennet, no livro A corrosão do caráter, mostra o quanto estamos nos destruindo como indivíduos no nosso trabalho. Mas contraditoriamente, o amor é cada vez mais tratado em nossa sociedade frívola e materialista como uma tolice, uma perda de tempo. Vale como negócio. E a dor que às vezes o acompanha, nem se fala. “A Sandra? Tá lá chorando por causa de homem, aquela idiota, ao invés de partir pra outra.” Versão masculina: “O Paulo, olha, um bobo, tá bebendo todas depois que levou o fora da fulana, com tanta mulher no mundo”. Não é assim? Fazemos troça da dor de amor dos outros. Pimenta no dos outros... Sofrer por alguém é pequeno, inconveniente, inoportuno. O cara fica chato. Ficar é legal, transar é o canal. Mas amar, bem isso já é mais complicado para essa gente criada na civilização capitalista, onde as pessoas se usam como coisas e se gastam como máquinas. Pra amar é preciso entrega, doação, algo que não combina com esse tempo que vivemos. O lema é: eu me amo e o outro eu desfruto. Se não vejamos o que é o ficar. Nada mais que um teste-drive. A gente dá uma pilotada no outro, prova um pouco do gosto, pisa um pouco mais fundo, dá uma verificada no motor, faz um balanço da potência... E vai contar pros outros. E vai pro próximo teste-drive. E o transar? Bem esse é o grande lance, desde que a mídia disse para todos que só o sexo e o dinheiro trazem a felicidade.
E se o capitalismo nos fez acreditar que tempo é dinheiro, a cultura aí gerada nos diz que tempo é prazer também. Quer dizer, temos pouco tempo pra gozar tudo e aí não cabe ficar chorando por dor de cotovelo, abandono, cornice. A coisa foi sacramentada já na frase de Luana Piovani, uma de nossas grandes filósofas atuais: “A fila anda”. Um sistema que prioriza o ter ao ser, só pode medir a felicidade pela quantidade de parceiros que se teve/tem, e não pela qualidade das relações; pela quantidade de orgasmos e não pela qualidade. Além do que, o amor é subversivo. Sempre que ele irrompe no coração de uma pessoa, ele imediatamente causa estranheza, incomoda o mundo. O apaixonado vive num outro planeta, a vida lhe fica diferente. E a sociedade gosta do igual, do mesmo, não do diferente. Octávio Paz, num belo texto do livro Labirinto da solidão, diz que “no nosso mundo o amor é experiência quase inaceitável”. E na verdade, todo tipo de amor é viável. Não existe amor impossível. O fato de existir um amor impossível já diz que ele é possível, pois que aconteceu. O que existe é a sociedade e seus impedimentos. Branco com preta, baixo com alta, velho com moça, cristão com muçulmana, homem com homem, mulher com mulher - todo tipo de amor é possível e se realiza, porque é da essência do amor se realizar. Mas porque a sociedade não gosta do amor? Porque, com raiz no diferente, ele rompe com as regras. De novo Octávio Paz: “[...]. A sociedade concebe o amor, contra a natureza desse sentimento, como uma união estável e destinada a criar filhos. Identifica-o com o casamento. [...] Daí também que o amor seja, sem se propor a isso, um ato anti-social, pois cada vez que consegue ser realizado, viola o casamento e o transforma no que a sociedade não quer que ele seja: a revelação de duas solidões que criam para si mesmas um mundo, que quebra a mentira social, suprime o tempo e o trabalho e se declara auto-suficiente.” Vejamos a publicidade, o cinema, as novelas, as letras de música (e não preciso nem citar as obras-primas do forró). Eles excitam as pessoas, erotizam o mundo, passando uma tesão e um espírito de aventura e gozo que as pessoas não tem, mas são iludidas a ter. Quando que a mídia enaltece o amor? Nas grandes datas comerciais: dia das mães, dos pais, natal... De resto é muita mulher pelada, cervejada na praia, carro potente pra conseguir mais teste-drive - não no carro, claro. E aí duas pessoas se apaixonam e fogem desse mundo, mergulham no deles. E logo vem a sociedade para domesticar essa rebeldia – tem que se acalmar, namorar, noivar, casar, ter filhos e, enfim, domesticar-se na vidinha doméstica. E depois ficar cinza olhando o álbum esmaecido de fotos do tempo dos sonhos, das loucurinhas, das escapadas. Ou então tem que acabar a relação.
Se o amor precisa ser domado, aquietado, logo a dor do amor precisa ser desprezada. São Paulo dizia que o melhor era não casar, “mas se arder, então que se case”, mas sem muito fogo. Era preciso segurar s fúria da carne. Hoje, amar é bobo e perda de tempo. E como tempo é dinheiro, e o consumo berra aos nossos ouvidos “transe, transe, transe”, lá vamos nós, buscando uma felicidade cada vez mais distante. Sem direito a amar de verdade, muito menos sofrer de amor, que tudo bem, não é a melhor coisa (já falei disso), mas é digamos, um nobre direito de quem ousou amar e romper.

O medo de amar

Quem já passou por essa vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu (...)
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer
Ai de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdão.
Vinicius de Moraes


Domingo, 8h. Depois de uma discussão com o marido, ainda na cama, Joana levantou, tomou uma dose de uísque, puxou uma cadeira para a varanda, subiu e saltou para a morte. Linda, 20 anos, casada havia dois anos, ela não suportou a decisão dele, 28 anos, de se separar. Precipitadamente, as pessoas julgam que Joana se matou por amor. Não foi bem assim. Essa história começou anos antes, quando era criança e seus pais se separaram. Ela, super ligada ao pai, nunca aceitou aquilo, nunca o perdoou por tê-la deixado, e teve uma relação tumultuada com ele, a partir dali. A ruptura dos pais e principalmente a negação do amor do pai, pelo menos na intensidade e presencialidade exigida por Joana, marcaram-na para sempre. Ela se transformou numa border line, seres marcados por rupturas e que pululam aos milhões por aí, com sua instabilidade de humor, tédio, sentimentos autodestrutivos e, claro, dificuldades na realização amorosa. O border line vive situações-limite, não raro à beira do abismo. Joana não viveu o amor de forma plena na infância e bloqueou-se em relação a ele. O amor virou um fantasma no seu inconsciente e ela passou sua breve existência sem se entregar ao amor de ninguém, à confiança de ninguém, exceto daquele que lhe seria um substituto do pai. E este lhe fugiu, como o outro. Rupturas demais. Ela se matou não propriamente por amor, mas por medo do amor, esse sentimento de entrega e integração que lhe era tão difícil.
Saindo da tragédia da vida real e entrando na fantasia da tela, o filme Eu odeio Dia dos Namorados, uma comédia romântica de Nia Vardalos, lançada esse ano, mostra um quadro interessante para esse papo aqui. Genevieve é uma florista que não quer envolvimento. Todos os seus relacionamentos não passam do quinto encontro, para evitar que surja o amor e, daí, sofrimento. Ela jura que assim é feliz. Até, claro, que aparece um bonitão que a faz querer o sexto encontro, o sétimo... E ele para no quinto, conforme o combinado. Só então ela descobre que não queria amar para não sofrer o que sua mãe sofrera com as traições de seu pai. Ela diz para si mesma: “nenhum homem vai me fazer sofrer como mamãe sofreu”.
Voltando à vida vivida, Fernando amou muito Raquel e quebrou a cara. Romântico e apaixonado, era do tipo que ainda manda flores, estende tapetes com toalhas, bermudas e meias, e compra nuvem para passear com seu amor. Pessoas assim, geralmente encontram pessoas não-assim. Resultado: agora ele foge do amor. Só ‘fica’, e jura que é feliz com essa “solidão de mão em mão”, como toca uma música por aí. Se ele continuasse a buscar a mulher para viver um grande amor, talvez no próximo se desse pior ainda. E no terceiro encontrasse alguém que curtisse flores, tapetes e nuvens. Falando em música, Beto Guedes canta faz quase 25 anos que “o medo de amar é o medo de ser livre para o que der e vier”, e o Forró do Muído toca nas rádios daqui dizendo “tá com medo de amar, é? Tá com medo do amor, e aí? Deixa a página virar”.
Enfim, o ponto. Morremos de medo de amar. E os motivos são vários, como vimos. Podem vir isolados, ou misturados. Resumindo, não queremos amar porque já sofremos muito por amor e assim, acovardados, perdemos o melhor da festa, como Fernando. Também não queremos amar, embora na maioria das vezes nem tenhamos consciência disso, porque nossas histórias familiares contam com perdas, rupturas e ‘faltas’ de amor, tal como Joana. Se não tive amor quando criança, como vou lidar com esse sentimento agora que cresci (pelo menos por fora)? Se nunca andei de bicicleta antes, como vou saber andar de bicicleta agora? Logo, passo a não gostar de bicicleta, tiro-a da minha vida. E também não queremos amar porque, esse tempo egoísta, narcisista, individualista que vivemos, nos grita que o grande barato é a emoção, a intensidade das paixonites, a quantidade dos “ficares”, sem alma no meio, assim meio como a Genevieve do filme ali atrás. Amores líquidos, como definiu Bauman no livro com esse nome. E como ele escreveu: “a solidão por trás da porta fechada de um quarto com um telefone celular à mão pode parecer uma condição menos arriscada e mais segura do que compartilhar um terreno doméstico comum”.
O filósofo francês Michel Lacroix, à propósito, num belo livro do ano passado, O culto da emoção, nos alerta que vivemos a era do grito e não do suspiro, da emoção-choque e não da contemplação. Buscamos, desesperadamente, viver emoções, seja nos filmes violentos, nos esportes radicais, nos relacionamentos tão loucos e intensos quanto rápidos.. . que acabamos ficando insensíveis. Mais ou menos como o astronauta que voando a milhares de quilômetros por hora tem a sensação de estar parado. Não amando, seja por qual motivo for, e vivendo uma vida covarde, mutante, cheia de emoções baratas e baldias, cama em cama, bar em bar, corpo em corpo – e pretensamente feliz - parecemos com o camarada que diante de um banquete, se empanturra com as entradas e não chega ao prato principal. No máximo vai beliscar a sobremesa.

O luxo do centro

Teatro José de Alencar, sábado. Lá dentro a música, pra mim a mais bela manifestação do gênio humano, explodia em vozes, instrumentos e boniteza. Teatro José de Alencar, sábado. Lá fora, o lixo, o lixo material e o lixo humano davam outro espetáculo, muito mais espetacular. Dentro, vozes afinadas dedilhavam almas sensíveis. Quase se ouvia o suspiro das pessoas que assistiam. Fora, roncos desencontrados de quem dorme torto num banco de pedra feito pra sentar, como as confortáveis poltronas lá de dentro. Lá dentro, uma mistura de perfumes dava ao ar um cheiro de leveza, de limpeza, um cheiro de mulher saindo do banho, de mulher saindo. Os cheiros se misturavam como aquele leve burburinho que ouvimos, quando a vida, com surpresa e encanto, nos depara com algo agradável, bom. Lá fora os cheiros de lixo, de mijo, de um mundo doente, pobre, feio, sujo, de gente que nunca toma banho, de gente pra quem a arte está em chegar ao dia seguinte. Lá dentro a música levava ao sonho, à fantasia, ao enlevo que só a arte é capaz. Fora, o sonho estava no sono mal dormido, perturbado por aquele ‘barulho,’ e aquecia pratos de comida e preparava camas macias.
A música que vazava para a rua era basicamente popular. Seria ideal, nesse cenário, que se tocasse a Nona de Bethoveen, pra mim a maior criação de um ser humano, se é que Bethoveen foi realmente um ser humano. Ou ainda Trois Gymnopédies, de Satie, pra mim o mais maluco, irreverente e sensível compositor. Seria perfeito: o máximo da beleza e o máximo da feiúra.
Duvido que mesmo na Índia se veja um cenário desses. Antes, as pessoas saindo de seus carros também lavados e brilhantes para o show - como os corpos e pescoços das mulheres -, desviam dos que dormem no chão, das latas, dos papéis que rolam... O luxo desvia do lixo. Mas o perfume não supera o mau cheiro.
Saio no meio do show tocado pela emoção e fico caminhando pelos jardins. Atendo o chamado do Carlton vermelho e opto por mais uns momentos daquele outro espetáculo, na verdade um show assustador da injustiça e da indiferença humanas. Penso no ícone da cultura, da arte e do status cearense mergulhado na triste verdade desse país. Escuto um mendigo deitado rosnar para si mesmo: ‘que horas vai terminar essa zoera?”
La dentro alguém canta “We are the champions”. Aqui fora se poderia fazer o coro: “e nós somos os perdedores”.
Lá dentro as cortinas se fecham. Aplausos para o melhor do ser humano. Aqui fora, céu aberto, o espetáculo continua, hoje e todas as noites, com o pior que conseguimos fazer.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

A mulher que o homem quer

Freud desvendou a alma, foi um gênio que pra mim não tem rival em toda trajetória humana. Mas desistiu de saber o que queria uma mulher. “A grande questão que nunca foi respondida, e que eu ainda não fui capaz de responder, apesar de 30 anos de pesquisa sobre a alma feminina, é: o que querem as mulheres?”, reconheceu. Então não sou eu que vou me atrever a tentar descobrir. Mas e os homens? O que querem os homens? As mulheres têm a resposta pronta: os homens querem sexo. De pronto, como parte da raça masculina, reconheço que elas não estão totalmente erradas. Um escritor de humor gaúcho, Carlos Nobre, dizia que “sexo não é tudo na vida, tem as mulheres ainda”. Quer dizer, é tudo mesmo! Mas não é bem assim. Disse que elas não estão totalmente erradas. Mas há correções. Biologicamente falando, a função do macho é engravidar o maior número de fêmeas possível, e a função da fêmea é escolher o melhor provedor. Isso desde o tempo das cavernas. A mulher escolhia o macho que fosse forte e valente para gerar filhos também fortes e valentes e para lhe dar proteção e comida, enquanto ela criava as crias. Hoje, a mulher continua sendo atraída pelo homem forte... mas na conta bancária. É o mesmo provedor, no fim das contas. Parêntese: dois livros que valem ser lidos a respeito são O animal moral, de Robert Wright, e Guerra de esperma, de Robin Baker. Escreverei sobre eles outro dia. Fecha parêntese. Voltemos ao homem. Ele, então, cumprindo primeiro a sua função biológica, primeiro deseja sexualmente a fêmea. E sabedora, desde que o mundo é mundo, que se o peixe morre pela boca, o homem morre pelo olho, ela desenvolveu e aperfeiçoou táticas, técnicas e fórmulas de sedução para atraí-lo. A roupa por exemplo. O livro Psicologia do vestir, de Umberto Eco, nos lembra que a roupa da mulher, toda ela, exala sexualidade. A dos pobres coitados dos homens, longe disso. No máximo elegância e bom gosto, que, aliás, no fim, significam “conta bancária”. Basta dar uma passada no Boteco uma sexta à noite, pra ver aquela mulherada toda produzida e sensual, desfilando ante os olhos bêbados de álcool e desejo dos machos.
Mas não se engane, menina: o homem não quer só sexo. Como disse Gonzaguinha: “um homem também chora, também deseja colo, palavras amenas, precisa de carinho, da própria ternura, precisa de um abraço da própria candura”. Em outras palavras menos poéticas, o homem precisa que se dê bola pra ele; quer ser admirado. E assim, o problema nem é dar ou não na primeira vez. O segredo está no antes do sexo, que ele vai querer de qualquer jeito. E isso vale pra primeira saída, pra segunda... Deixemos a biologia de lado e encaremos um pouco de psicologia. O segredo está em você desvendar o mundo dele e cativá-lo por aí. E isso é facinho facinho. Esses dias, falando com uma advogada brasiliense, pós-graduada e tão bonita quanto inteligente, que passava uns dias em Fortaleza, ouvi essa: “homem pra mim tem que gostar de futebol, carro e cerveja”. Ela captou o espírito da coisa; em bom cearês: coisô. Ela não tem problema com homens. O que eu quero dizer é: use sua maior sensibilidade. Se ele adora carros, ama futebol e explica a diferença entre a Kaiser e a Schincariol timtim por timtim, não diga que não entende nada disso, que pra ele é o óbvio; muito menos despreze sua explanação com frase do tipo “mas que importância têm isso?” Pra ele, tem toda! Diga algo do tipo “bacana, você é um cara do seu tempo”. Ele vai adorar. Se ele for normalmente doente por futebol, fale que o jogo lembra um balé, a dança das pernas; e diga que quer então que ele lhe explique direitinho o que é impedimento, que ninguém conseguiu até agora. Não diga que odeia futebol ou pior, que acha ridículo 11 marmanjos correndo atrás de uma bola. Isso é o que todas dizem. Coisô? Mostre que você é diferente. E mesmo que você entenda desses assuntos, não faça a asneira de discutir com ele. O macho gosta de dar as cartas e cantar o jogo. Pois jogue. E ganhe. Então deixe o pavão se achar. Não seja óbvia, seja surpreendente. Respeite, ou faça de conta que respeita o mundinho dele. E ele vai querer algo mais do que sexo com você. É por aí. As mulheres não dão a mínima bola pro mundo dos homens. Eles são carentes disso. Eu sei, sou um deles. Meu Deus, é tão fácil! O mundo do homem é tão pobrinho que você nem precisa se esforçar muito para agradá-lo. Ele gosta de poucas coisas e (quase) só pensa naquilo. Não seja tão superiora, que você acaba só por baixo. Ele entra com a biologia e você com a psicologia. E o dito estará no papo, literalmente. Porque se o homem morre pelo olho é pela palavra que ele agoniza e se entrega. Pois mate-o! E não estou falando de sexo.

sábado, 22 de agosto de 2009

Quero uma mulher

Quero uma mulher que quando eu disser que não gosto e não entendo de carros, não fique chocada, mas que me diga: "que bom, temos uma afinidade, já". Que quando eu disser que amo poesia e Fernando Pessoa, não comece a me olhar desconfiada, mas que, se não for pra dizer “eu também”, diga “também gosto de poesia, mas não conheço Fernando Pessoa, me apresenta?”.
Quero uma mulher que quando eu me emocionar e chorar falando de algo como a beleza de encontrá-la, não me tire por bobo, apesar de fofo; e que quando eu tiver uma crise de choro que a assuste diante de uma ameaça de rompimento, não me julgue fraco, nem frágil, mas apenas sensível. Que quando eu deitar do seu lado e não estiver a fim, ela não pense que não sou macho o bastante, “porque todos os homens querem sempre transar”, mas entenda que o desejo, o do homem também, e o meu no particular, sofre nuances de humor e intensidade; e que quando eu quiser transar na hora mais inoportuna, entenda que pra mim aquela é a hora mais oportuna.
Quero uma mulher que se eu mandar flores só no dia dos namorados, ou no aniversário de namoro, fique zangada e ache que o certo é mandar quando se faz dez meses, duas semanas, três dias e dez horas de namoro. E que se eu lhe mandar três buquês de flores de uma vez, não me chame de exagerado, louco, mas de apaixonado e até ache pouco, diante de tanto amor.
Quero uma mulher que adore surpresas, como escrever ‘eu te amo’ com papel picado no console do carro, enquanto espero ela descer do seu apartamento; ou arrancar flores da rua e ir colocando no chão que ela vai pisar, e nunca me diga “suas surpresas me assustam”. Porque me assustam as que se assustam.
Quero uma mulher que desfrute do meu corpo sem pudor, posto que o entrego sempre em holocausto, e que me deixe dispor do seu como se fosse extensão do meu.
Quero uma mulher que durante o sexo não se choque com os meus palavrões misturados com os “eu te amo” e que no silêncio do depois da fusão e da explosão, entenda que eu também curto aquele momento de quietude e também gosto de carinho, dengo e palavrinhas boas.
Quero uma mulher que quando eu me fechar em mim, entenda que preciso visitar meu mundo para poder respirar aqui fora e que não estou fugindo, muito menos amando menos.
Quero uma mulher que mesmo me achando de outro mundo, cometa a loucura de viajar comigo pro meu planeta.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Caras

Uma das cenas mais tristes de se ver ao andar por essa cidade (leia-se qualquer cidade) é a cara das pessoas nas paradas de ônibus. Triste não é uma palavra que defina bem esse sentimento. Melhor é a expressão borocoxô. Aliás, a palavra triste não é triste, mas borocoxô é isso mesmo: borocoxô. O dicionário diz : “borocoxô - que está sem ânimo, sem energia; que está alquebrado, envelhecido, que está amuado, aborrecido”. E não é isso que vemos nas caras das pessoas que esperam ônibus? É que esperar, seja o que for, já não é legal; esperar ônibus, pior ainda; mas esperar em Fortaleza, quer dizer, sabendo onde vai entrar... isso merece um outro texto.
Mas tem coisa ainda mais borocoxô do que a cara de paisagem de quem fica plantado num abrigo esperando o ônibus. É a cara de quem passa de ônibus. Aquela cara que vemos passando rapidamente quando vamos atravessar a rua, ou, lei da compensação, quando estamos na parada esperando.Cara de natureza morta.
Outra cara para o catálogo das mais danadas – cara de consultório (qualquer consultório). Aquele monte de gente estranha, que entre uma revista Caras, sem capa, e outra, sem capa de novo, volta e meia olha para as caras em torno. A gente olha e fica pensando, “o que será que essa criatura tem?” Ou então se perde a olhar o pé da mulher da frente, bem feito... bem feio; ou o cabelo daquela outra, filosofando sobre qual o nome que a fábrica da tintura deu aquele tom; ou a gente se liga tentando ouvir a conversa daquelas duas senhoras falando algo empolgante sobre seus filhos ou sobre um novo ponto de crochê. Isso mesmo, crochê, sabe o que é? É que a gente naquele mundinho busca assuntos adormecidos que acordam no torpor do consultório. Mas o melhor mesmo é olhar as caras. Bom não levar espelho.
Outra cara que dói: cara de elevador. Aí não é só a cara, claro. É a situação toda que incomoda. A invasão do território da gente. A ciência diz que temos em torno de nós uma faixa de 1 a 1,5 metro, que invadida, nos constrange. É o nosso espaço, o nosso território. Aí a gente fica ali sendo invadido no nosso cheiro, na nossa caspa, nas nossas manchas, e invadindo as dos outros.
Mas o pior de caras que já vi , foi numa exame de fertilidade que fiz; o exame se chama espermograma. Imagine uns oito homens sentados em um baquinho, a maioria não fazendo porra nenhuma a não ser esperar a hora em que serão chamados para justamente coletar a tal. Existe um só local para coleta do material, que na verdade é um banheiro. A cada um que entra a gente fica controlando quanto tempo o camarada vai levar para gozar, de olhos abertos e fazendo pontaria num pote que nem em um ano ele encheria. (Abro esse parêntese para pensar na diferença entre homem e mulher. Imagine se para saber se pode ter filho, a mulher precisasse ter um orgasmo? Fecha parêntese). Bem, a cara do sujeito quando sai do banheiro com o material coletado com as próprias mãos é de dar dó. Aquele minguadinho no vidro, os olhares dos outros homens na espera de fazer sua parte, a entrega para as moças do balcão... Taí uma cara que não desejo pra ninguém. Cara de pau ao contrário.

domingo, 16 de agosto de 2009

Amor proibido, ou blood, sweet and tears

João tinha bebibo copos adentro numa agonia auto-destrutiva. Motivo: desamor. Causa: rompimento.
Pois João estava assim, quando sentimento causa dor física. Dor de amor não dói só na alma, dói na carne. Sua solidão era do tamanho da sua dor. Rodando e rolando, num bar, vendo um solitário com cara de vontade de morrer, sentou pensando dividir copo, papo e dor. O cara não deu a menor importância a João. Disse que não queria conversa, que já tinha decidido se matar mesmo e estava indo fazer isso logo que terminasse a cerveja. João não deu importância. Afinal ele também pensava nessa possibilidade e talvez nem esperasse terminar a cerveja.
Levantou-se, deu um tapinha no ombro do sujeito, querendo dizer "que merda, camarada" e "foda-se" ao mesmo tempo. Resolveu ir para casa decidir seu destino com a geladeira. Abriu mais uma e deitou-se na cama. Dormiu antes de pensar na janela, onde embaixo, num barzinho alguém tocava Dindi. Nem percebeu que a garrafa entornou e encharcou seu corpo também por fora.
Acordou às 5h com o telefone tocando. Zonzo, não sabia se o corpo estava molhado de sangue, se havia se cortado; nem se estava vivo. No telefone alguém com voz triste, bêbada, chapada, diz apenas: "onde?". João não entende. "O teu endereço, onde fica?". Era ela, a que fazia sua alma e sua carne doer. Ele nem lembrou o endereço, deu uma referência lá embaixo. Ela saiu correndo de casa, pegou um táxi e disse pro motorista: "o mais rápido que você puder, por favor". João desceu para a rua à espera do que nunca esperara. Olhando para um lado da rua, é abraçado por trás com força e desespero. Ficaram as 12 horas seguintes na cama juntando almas e corpos doloridos. Fizeram um sexo desesperado: não era o gozo, era a fusão que importava. "Se não tivesse grades nas janelas lá em casa, tinha me jogado". "Se não tivesse a geladeira cheia aqui, também". Olhos nos olhos, carinhos, olhos nos olhos, sexo, olhos nos olhos, lágrimas. "É nosso último encontro, não suporto a pressão do mundo, amigos, mãe, vou ficar louca". "Eu já estou louco". Sem banho, sem levantar da cama, sem comer, misturando porra com sangue de menstruação, lágrimas e suor com saliva, eles se purificaram. Naquelas 12 horas o mundo perdeu, o mundo se fudeu com seus preconceitos e sua verdadeira sujeira. Naquelas 12 horas foram felizes para sempre.

6 SE MEXERAM:

André Victor disse...
Quando se lê um texto seco, ríspido, escrito sem frescuras e com uma exposição visceral, é inevitável a ligação à um nome: Charles Bukowski. Para quem não o conhece, procure... O velho safado, apesar de marginal da literatura mainstream, é um grante escritor e que traz um grande dueto entre vida e obra, pois os dois entrelaçam-se e acabam gerando registros ficticios e ao mesmo tempo autobiográficos.

Parabéns pelo texto, Capa!
10 DE AGOSTO DE 2009 18:59

luiz gonzaga capaverde disse...
André Victor, só vc pra lembrar do nosso amado Bukowski. Qdo escrevi pensei nele e pensei que só tu farias essa relação. Jamais respondi ou comentei um comentário, mas vc me forçou a isso. Se não falasses no velho e incomparável Buk, eu ia ficar puto contigo. Valeu, garoto, faça a diferença nesse curso. Vem mais desse meu lado podre por aí. Abração.
10 DE AGOSTO DE 2009 19:20

Natalie disse...
incrível. a sensação nua, literalmente, do que é AMAR.
11 DE AGOSTO DE 2009 00:44

Almir Moreira disse...
textos pesados, também são sensuais.
existe uma ligação muito forte também com desilusões e dá muita mais vida a obra.
muito bom, Capa Vêrdê
11 DE AGOSTO DE 2009 16:19

Anônimo disse...
Enfim, parece que surge um escritor peso pesado no Ceará.
11 DE AGOSTO DE 2009 17:55

Magali Schmitt disse...
Que coisa mais... real. Se alguém se chocar, é por que nunca viveu uma grande história. Se não curtir, é porque não tem coragem de expor seu âmago, como tu tão bem o fizeste, Capa, dando tua cara a tapa. Coragem admirável.

super beijo

sábado, 25 de julho de 2009

Eu queria ter escrito isso

Tem uma canção de Milton Nascimento e Tunai que fala daquele sentimento maluco que vez por outra nos acomete quando nos deparamos com algo que tem a cara da gente, tem tudo a ver com a gente, mas não foi a gente que fez, escreveu, compôs... Chama-se Certas Canções e diz assim:

Certas canções que ouço
Cabem tão dentro de mim
Que perguntar carece
Como não fui eu que fiz?


Pois quero aqui iniciar uma "sessão" nesse meu bloguizinho tão fulero e sem leitor chamada "Eu queria ter escrito isso".
E começo com Affonso Romano Sant'anna, pra mim(e muitos) o maior poeta vivo desse país. Quatro jóias da palavra que eu queria ter escrito.

Poemas para a Amiga
(Fragmento 7)



Estranho e duro amor
é o nosso amor, amante-amiga,
que não se farta de partir-se
e não se cansa de querer-se.
Amor
todo feito de distâncias necessárias
que te trazem
e de partidas sucessivas
que me levam.
Que espécie de amor
é esse amor que nos doamos
sem pensar e sem querer com tanto amor
e tão profundo magoar?
Estranho e duro amor
que não se basta
e de outros amores se socorre
e se compensa
e neste alheio compensar-se
nunca se alimenta,
mas se avilta e se desgasta.

Estranho amor,
ferino amor,
instável amor

feito sem muita paz,
com certo desengano
e um desconsolo prolongado.

Feito de promessas sem futuro
e de um presente de saudades.
Chorar tão dúbio amor
quem há-de?

Estranho amor
e duro amor
incerto amor,

que não te deu o instante que esperavas
e a mim me sobejou do que faltava.


.................

Poemas para a Amiga
(Fragmento 2)


Eu sei quando te amo:
é quando com teu corpo eu me confundo,
não apenas nesta mistura de massa e forma,
mas quando na tua alma eu me introduzo
e sinto que meu sangue corre em ti,
e tudo que é teu corpo
não é que um corpo meu
que se alongou de mim.
Eu sei quando te amo:
é quando eu te apalpo e não te sinto,
e sinto que a mim mesmo então me abraço,
a mim
que amo e sou um duplo,
eu mesmo
e o corpo teu pulsando em mim.


.........................

Separação


Desmontar a casa
e o amor. Despregar
os sentimentos das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.
O amor não resistiu
às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.

Empilhar livros, quadros,
discos e remorsos.
Esperar o infernal
juizo final do desamor.

Vizinhos se assustam de manhã
ante os destroços junto à porta:
-pareciam se amar tanto!

(................)

Amou-se um certo modo de despir-se
de pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo
modo de botar a mesa. Amou-se
um certo modo de amar.

No entanto, o amor bate em retirada
com suas roupas amassadas, tropas de insultos
malas desesperadas, soluços embargados.

Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?

No quarto dos filhos
outra derrota à vista:
bonecos e brinquedos pendem
numa colagem de afetos natimortos.

O amor ruiu e tem pressa de ir embora
envergonhado.

Erguerá outra casa, o amor?
Escolherá objetos, morará na praia?
Viajará na neve e na neblina?

Tonto, perplexo, sem rumo
um corpo sai porta afora
com pedaços de passado na cabeça
e um impreciso futuro.
No peito o coração pesa
mais que uma mala de chumbo.


.....................

Mistério


O mistério começa do joelho para cima.
O mistério começa do umbigo para baixo
e nunca termina.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

O vazio nosso de cada dia

Li uma entrevista do Tom Jobim - isso faz muuuito tempo, mas me marcou - onde ele dizia que todos temos um vazio dentro nós que jamais preencheremos e por isso ele fazia música. Que por mais que se aprenda, se viva; por mais que nos busquemos e até nos encontremos, nunca conseguiremos preencher esse vazio. O que é esse vazio, o porquê dele, Jobim deixava para os entendidos na alma humana. Assino embaixo. Mas que ele existe, o vazio, dentro de mim, dentro de todos, ele existe. O que é esse peso na minha alma nessa manhã franzina? O vazio pesa. O que é esse cinza que entristece e descolore minha tarde? O vazio tem cor.

Passamos a vida aos tapas e aos tombos com ele. Passamos a vida tentando preenchê-lo. No verso, no trago, no sexo, no shopping, no trabalho... Escrevo por isso – tô tentando. E você? Enfrenta o seu vazio de que maneira? Colecionando amores? Esvaziando garrafas? Afundando no trabalho? Abrindo a geladeira? Também escrevendo?

Pense comigo: por que será que quando vamos a uma festa, quando saímos à noite, temos que beber? Se não se bebe parece que a coisa não liga, não tem graça, fica vazia, enfim. Festa boa, é de porre grande. As pessoas hierarquizam a diversão na medida em que bebem e conseguem se livrar das inibições, dos medos, e dele, claro, do vazio, que assim fica submerso no álcool, bebinho bebinho. “A festa tava ótima, tomei um foguete daqueles”. Que pobreza as nossas diversões – alegria movida a cerveja, sorriso movido a uísque, simpatia movida a vinho, sexualidade à champanhe; e o outro sendo apenas prato para matar a nossa fome! Mas nada extingue, supera, resolve o problema do vazio.

Ele não tem hora para atacar, mas é a noite que age mais furiosamente. Por isso na noite bebemos mais, fumamos mais (aqui lembro Quintana: “desconfio das pessoas que não fumam. Fumar é uma maneira disfarçada de suspirar”). Às vezes ataca de manhã ao acordarmos e olharmos para o dia à frente como dois parênteses sem nada dentro, ou talvez pior, como uma página já escrita e da qual sabemos tudinho que vai acontecer até o ponto final. Uma página-dia cheia de vazio.

Mas pensando bem, eu não quero deixar de me deparar com o vazio, vez por outra. Porque eu gosto de ter medo, me sentir inseguro, meio perdido e confuso diante da maravilha que é a vida e as pessoas todas, tão atrapalhadas todas. Porque existindo esse vazio, o pecado pode ser doce, o amor eterno, o gole suave e a geladeira uma grande amiga (que bom, num domingo, em casa, sem nada pra fazer, abrir a geladeira e encontrar algo muito bom pra comer e tentar encher o vazio; mas não se engane, ele não está no estômago). Porque por causa do vazio, existe mais sensível a música, a poesia, a arte toda, o sorriso do filho, a beleza da mulher que passa do outro lado da rua e que nunca mais se verá, o dia de sol, o dia de chuva e... a geladeira.

Pensando bem, na próximo vez que o vazio me atacar, vou tratá-lo bem. Faça o mesmo, sugiro. Afinal, vamos viver juntos a vida toda. Nós e o vazio. E depois, é graças a ele que a gente enche do outro, do emprego, do mundo e da vida que se leva, vazia, e se arranca para novos caminhos – outros carinhos, outro cartão-ponto, outro mundo. E pensando melhor: dá pra agüentar ser feliz sempre? Nada mais triste do que alguém que anda sorrindo sem parar por aí. Parece gente sem vazio, cheia de risada. Pensando bem: hei,vazio! olha eu aqui!

terça-feira, 19 de maio de 2009

Teoria e prática: O jornalismo e a mesmice da vida

A formação e a prática jornalística têm como dogma que um bom texto deve sempre ser escrito de forma simples, de forma que todos entendam - como se constata em qualquer manual de redação. Esse dogma, que numa primeira interpretação, poderia me afastar do pensamento e do texto adornianos, tem justamente a força do contrário, posto que me levou, é bem verdade que aos poucos, a ancorar e, por fim, aportar em Adorno. E me salvar. Para explicar isso é preciso dizer que por mais de duas décadas exerço o magistério superior, lecionando disciplinas que, só também numa primeira interpretação, podem ser vistas como distantes em forma e conteúdo: redação jornalística e teoria da comunicação, uma prática e outra teórica. Aos poucos fui percebendo que elas estavam, realmente, tão distantes na roda do mundo... que se tocavam. Aos poucos fui percebendo que Adorno se interpunha entre as duas disciplinas e que ele ia se constituindo no ponto, não que separava, mas que as unia, pelo menos em mim.
Na primeira, redação jornalística, com conteúdo programático preso às técnicas de redação importadas da cultura pragmática e midiática norte-americana, eu me via diante da formatação e da padronização justamente que a segunda, teoria da comunicação, no enfoque da indústria cultural, apontava e condenava. Por um lado, então, eu “ensinava” os alunos a produzirem textos dentro das fórmulas e moldes ditados pela técnica jornalística, isto é, textos que seguissem os mandamentos da clareza, da ordem direta, da voz ativa, da concisão, enfim, que seguissem o que os manuais, todos os manuais, diziam e ainda dizem que são os requisitos para um bom texto. Porque ele seria ouvido ou lido por todas as classes, do operário que prepara paredes sólidas numa construção, ao douto profissional liberal que, solidamente instalado, ocupa essas quatro paredes. Em outras palavras, o texto era para um público heterogêneo e assim ele devia ser homogêneo. Sendo para todos, ele deveria ser para ninguém, porque ele era para a massa. Eu, vítima como todos de um mundo fracionado, de um ensino fragmentado e de um pensamento, por conseqüência, também compartimentado, não percebi isso aos poucos, muito aos poucos, fazendo o meu caminho, me (re)construindo – muito graças a Adorno – a partir do que havia sobrado de mim, de “eu”, do que não me fora “mesmizado”, destruído mesmo. E foi então, trabalhando com a indústria cultural, na disciplina de teoria da comunicação, que comecei a juntar as peças separadas e, mais que isso, comecei a perceber que essas peças foram propositalmente separadas. Fui percebendo que ensinava numa disciplina – redação jornalística - a fazer de um jeito que era justamente o jeito que eu ensinava que a outra – teoria da comunicação - condenava. Ensinando, aprendi que a técnica e a teoria andam juntas sempre, a mesma face de uma mesma moeda chamada vida, e que eu como o mundo, as tratava de maneira separada. E aprendi que a primeira, a técnica, despreza a segunda, tida como algo vago, imponderável, inútil mesmo. Fui percebendo que os alunos desprezavam a teoria – as disciplinas teóricas eram, como são, chamadas de “caça-níqueis” -, fui percebendo que eles desprezavam aquilo que não ensinava a fazer, mas que ensinava a pensar o fazer. Fui percebendo que a teoria era e é vista no mundo da obrigatoriedade do pensamento objetivo, como um mal necessário, algo a suportar. Adorno, falando sobre o ato de escrever, diz no aforismo Atrás do espelho, em Minima moralia (p.75):

O escritor instala-se em seu texto como em sua casa [...]. (Seus pensamentos) são para ele como móveis nos quais se acomoda, sente-se bem ou se irrita. Ele acaricia-os afetuosamente, usa-os, desarruma-os, organiza-os de outro modo, arruína-os. Para quem não tem mais pátria, é bem possível que o escrever se torne a sua morada.

Fui percebendo que a técnica que tanto eu usara como profissional da escrita e que agora passava para meus alunos, funcionava sem dúvida, “comunicava”, mas era a técnica do pensamento objetivo, instrumentalizado. Comunicava faticamente, como diria Jakobson, assim como o “bom dia” frio e impessoal ao porteiro do prédio comunica minha existência (nossas existências), mas não lhe comunica um sentimento. Usando a metáfora adorniana que coloca os pensamentos como móveis de uma casa, eu percebi que esses móveis na verdade eram inarredáveis, móveis imóveis, construídos para serem daquele jeito e ficarem naquele lugar fixo, pensamentos amarrados. Eram pensamentos da vida instrumentalizada, filhos da razão instrumental. A técnica de escrever, no particular, domava e dominava o pensamento – como obviamente ainda o faz, do mesmo modo que a técnica toda doma e domina tudo e todos. A técnica de escrever gera a técnica de ler, assim como a técnica de fazer um filme gera uma técnica de ver um filme. Se sair daquilo que é o formato, a gente não entende aquilo que é o conteúdo. Por isso temos dificuldades nos textos mais elaborados, que extrapolam os modelos e fórmulas. E textos aqui tem o sentido semiótico de todos os textos – uma notícia, um livro, um filme, uma roupa ou mesmo uma postura. A técnica é como uma sala cheia de móveis que não se pode mudar de lugar: oferecem até conforto, mas são sempre os mesmos, senta-se olhando sempre para o mesmo lugar. Aliás, já se procura o mesmo lugar para sentar porque se sabe para onde se olhar e o que se vai olhar. É como o velho cavalo do padeiro, que “decorou” cada parada – a casa está vazia, o dono se mudou, mas a parada é automática. No caso da produção textual, escreve-se de modo tão sempre igual, que qualquer outro jornalista, cavalo de padeiro, poderia fazer o mesmo texto. “Qualquer outro” são todos e não é ninguém. E o leitor, tão rotinizado e robotizado na sua leitura, cavalo de padeiro, pode ser qualquer leitor. Qualquer leitor também é ninguém, porque são todos. No ensaio Sobre música popular Adorno vai dizer: “O ouvinte sente-se lisonjeado porque ele tem o que todo mundo tem”. Era sobre música que escrevia, mas vale também para a leitura, já que na vida administrada pela razão, a padronização da produção e a reprodução da mesmice mudam só de lugar, as salas são sempre iguais, os textos são sempre iguais.

Teoria e prática: O jornalismo e a mesmice da vida (final)

Fui percebendo, aos poucos então, que a minha atividade profissional como jornalista era a realidade de todos os profissionais, não só jornalistas – uma vivência de práticas, de técnicas, de fórmulas, clichês, standards e slogans que envelheciam ad infinitum sem desaparecer nunca. Entendi que, no caso da comunicação feita através da indústria cultural, como disse Bruno Pucci

[...] as conseqüências inevitáveis do uso abusivo dos clichês desembocam no “esvaziamento da atividade de comunicação”, no “empobrecimento da imaginação do indivíduo”, na justaposição de um discurso demasiadamente colado aos fatos ou por demais abstrato. Podemos dizer que os clichês se transformam no avesso dos exercícios estéticos propostos por Baumgarten, ainda no século XVIII, para desenvolverem nas pessoas “a aptidão para pensar de modo belo e de modo lógico ao mesmo tempo”. Através deles, se pode exercitar e harmonizar os sentidos e as “faculdades inferiores”, em proveito da elegância do conhecimento. E experimentar o mais plenamente possível a fantasia, a perspicácia, o dom poético, o gosto fino e apurado, a disposição de pressentir (arte divinatória) e a capacidade de expressar com elegância suas percepções.Na era esplendorosa dos meios de comunicação, tudo é facilitado, tudo se torna tão próximo, tudo já vem pronto e direcionado [...].

A palavra é, assim, “cunhada pelo comércio”, isto é, é transformada em instrumento para a compreensão rápida, digestão imediata, pseudamente isenta, falsamente acrítica. Fui aos poucos entendendo que a vida vivida nesse mundo instrumentalizado é toda ela – não só a do jornalismo - voltada para essa praticidade, essa visão de resultados, um outro nome para a cegueira. Pucci vai falar no texto já citado em “orientação funcionalista e fragmentária”, “visão dicotômica e fragmentária”, referindo-se aos cursos pré-vestibulares e aos cursos de graduação, lugares onde “a exclusão da reflexão e do estético [...] transferem para a pós-graduação [...] candidatos com dificuldades extremas para pesquisar, elaborar reflexões, redigir um texto”. Era sobre ensino formal que ele escrevia, mas vale também para o “grande” ensino, a grande escola do mundo, além dos muros das escolas institucionalizadas, que mais formata do que forma tudo e todos. Tal qual o Operário em Construção, de Vinicius de Moraes, que de operário construído se fez operário em construção, eu percebi o quanto fragmentariamente eu ensinava e vivia, e o quanto à vida toda e tudo é isso. E me mudei de mim mesmo. Hoje não rejeito as fórmulas, os rótulos, mas questiono-os. E na medida do impossível busco o diferente, a variante, o outro jeito. Minhas aulas de redação jornalística ainda ensinam o texto formatado, condição de mercado, mas com postura crítica, de que se escreve assim porque se escreve pra ninguém, ou para todos, que é a mesma coisa. E trabalho sempre o texto livre, leve e solto, condição básica de vôo e sobrevivência para cada um que quer flanar pelo universo da palavra, do jornalismo, e da vida, enfim. Como pessoa cada vez mais reverencio os Satie, os Modigliani, os McCullers, gente diferente, que fez a diferença.
Quero destacar, também, que nessa caminhada com Adorno percebi ainda que como professor eu fui ensinado que ensinar, ser didático, era explicar coisas aparentemente complicadas, ou complicadas mesmo, mas sem apresentar essas coisas aos alunos. Por exemplo: eles não liam Adorno, mas liam textos mais acessíveis que descomplicavam Adorno, que, como disse Valls, escrevendo difícil fazia o “seu jogo de esconde-esconde e de meias palavras [...] por simpatia, por respeito à inteligência do leitor”. O pensar com mais profundidade era (e é)) desestimulado. Mas se “conhecia” Adorno. Mais ou menos como se “conhece” a Sinfonia nº 40 de Mozart através do trecho mais popular dela, de preferência usando como referência o enunciado: “aquela da propaganda do sabonete”. Essa superficialidade, estendida a todas as formas do viver, um viver danificado – o viver do clichê, da padronização, dos jogos de aparências em que estamos metidos, do fácil e do fútil - isso foi do que acabei me dando conta, em reconstrução, a partir das idéias de Adorno e Horkheimer. Eu já quase virava dinossauro, não tanto pela idade, mais pela dureza/rudeza que o mundo objetivo e seco me impingira no corpo e na alma. Mas como bem frisou Che Guevara, de que devemos endurecer, “pero sin perder la ternura jamás”, sobrou um pouco de mim, e desse pouco refiz-me, no que ainda deu tempo e no que havia ainda de tinta para escrever a minha própria narrativa de ser. Essa reconstrução, lembro Barthes, deu-se com “nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível". Tenho saboreado muito, desde então.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

As mulheres só querem sexo

Eu tomava uma cerveja, depois da aula, num bar em frente à Unisinos, universidade onde eu trabalhava, no torrão gaúcho, e um aluno se aproximou com aquela intimidade que a noite propicia e o álcool exacerba. Conversa vai e vem ele entrou no assunto que estava enlouquecendo o seu copo.
“Professor, é o seguinte. Não agüento mais essa mulherada.Não consigo uma garota prá namorar. Só prá transar. Toda sexta à noite eu saio, vou num bar, uma danceteria, e arrumo mulher prá dormir. Mas eu quero namorar, sabe?”
E explicou o que era namorar prá ele.
“Eu quero ficar em casa com a menina fazendo massa e enchendo a cara de vinho barato, daqueles de garrafão. Quero caminhar de mãos dadas pela calçada. Quero gostar, sabe?”.
Aquilo me lembrou imediatamente uma outra conversa, dessa vez com uma garota, também aluna. Ela me pediu que apresentasse alguém prá ela, que ela não agüentava mais não ter namorado. “Puxa, professor, o senhor conhece todos os alunos, me apresenta um que queira uma namorada. Os homens não querem mais namorar, só querem transar.” As mulheres se queixam muito dos homens.
Pensei em apresentar os dois, mas não me lembrava mais quem era a menina. Mas contei a história para ele, que enquanto me escutava enchia o seu copo. Ele era um tipo que acho que as universitárias acham interessante. Devia ter uns 24 anos. Pele morena, cabelos num corte meio feminino, penso que chanel, um brinco discreto. Mas com cara e corpo de homem, o que fazia um arranjo bonito.
Daí passamos a falar de livros, aula. Até que uma menina no fundo do bar chamou a atenção dele. Bonita, loira do tipo “olha como sou gostosa”, ela atirava os cabelos pra lá e pra cá, e entre um gole e outro de cerveja olhava para o pobre procurador de namorada. Talvez conscientemente, ela bebia sua garrafinha direto no bico. Isso reforçava o jogo de sedução que ela estava jogando, pelas mensagens outras que passava ao procurador de namorada. Procuradora de namorado?
Vi o brilho no olho dele. E lá foi, copo em punho, conversar com a menina. Procurar o quê mesmo?
Fui pra casa pensando em Vinicius de Moraes que escreveu: “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Fui pra casa pensando em Arthur da Távola, que disse que “não tem namorado quem não sabe o valor de mãos dadas; de carinho escondido na hora que passa o filme; de flor catada no muro e entregue de repente... “
Fui pra casa cantando Vinicius baixinho, respeitando meus ouvidos: “Se você quer ser minha namorada / ah! que linda namorada você poderia ser / se quiser ser somente minha / exatamente essa coisinha / essa coisa toda minha / que ninguém mais pode ser...”. Puxa, conquistei “todas” as namoradas cantando essa música. Parecia tão fácil arrumar namorada cantando “Minha namorada”. Mas lembro que os amigos já se queixavam muito das mulheres.
Dias depois, encontrei de novo o procurador de namorada.
Arrisquei: “E aí, encontrou a parceria para o vinho de garrafão?”
E ele: “Que nada! Aquela loira queria era sexo. Fomos lá pra casa, depois de muitas cervejas. Mas não a vi mais por aqui. É o que eu te disse, as mulheres só querem transar, professor”.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

No meio da minha rua tinha um lixeiro

Saía de casa pro trabalho bem arrumadinho e cheiroso. Lá adiante, uns 100 metros, vi um velho lixeiro começando o seu serviço. Empurrava um carrinho e vestia um macacão puído, sujo. A barba branca estava por fazer; o rosto, marcado, expressava um misto de tristeza e dor. Eu me sentia bem nessa manhã. Minha alma devia estar pesando um milésimo de grama. Meus pensamentos estavam em paz e meus sentidos bebiam as cores, os cheiros e os rostos da manhã. Enquanto eu caminhava e me aproximava do velho lixeiro, pensava como pode alguém chegar à velhice assim – caminhando pra morte juntando restos da vida (boa, farta, em alguns casos) dos outros; varrendo as ruas de uma sociedade que nunca lhe deu chances? Quando passava por ele, nossos olhos se cruzaram. Timidamente ele baixou os dele. Pensei que estivesse envergonhado, assim velho e lixeiro diante de alguém, mais jovem, bem arrumadinho e cheiroso. Mas logo a vergonha mudou de lado, se é que estava ou esteve do lado dele. A vergonha ficou por minha conta, ficou em mim, por me flagrar julgando aparências. Quem disse que esse velho lixeiro não deu mais certo do que eu? Quem disse que sua alma não pesava menos que a minha nessa manhã, enquanto empurrava seu carrinho e seu radinho chiava uma música qualquer, mas que eu certamente não aprovaria? Quem disse que esse velho lixeiro, com sua barba por fazer e seu macacão surrado, não deu mais certo do que esses que andam por aí desfilando marcas novinhas no corpo todo, no carro, como se nossas vidas e corpos fossem grandes outdoors do sucesso e felicidade de cada um? E afinal o que é dar certo? Dar é certo é ser feliz, pô! Shinyashiki, aliás, tem um livro que se chama O sucesso é ser feliz. Quem pode dizer que aquele velho lixeiro é mais infeliz do que eu? Ou menos feliz? Ou mais feliz? Sabe-se lá da sabedoria que se esconde naquela cabeça branca – aquela sabedoria que vem da dor e da delícia da vida vivida... Sabe-se lá de suas alegrias, de seus prazeres? Os momentos de enlevo que vive quando a noite chega e esperando o jantar fuma um cigarro, quem sabe até daqueles juntados da rua, escutando sua musiquinha chiada? Sabe-se lá da alegria que ele experimenta nos domingos indo passear na casa dos filhos, ou dos netos, ou ficando em casa, à espera deles? Sabe-se lá como vive bem com sua companheira de tantos anos, e que os anos murcharam e sulcaram e como nas noites frias eles encaixam seus corpos cansados e aquecem suas almas? Pode não ser nada disso. Pode ser mais do que tudo isso. A vergonha ficou por minha. Ficou comigo. Me incomoda ainda. Deitou comigo ontem e atrapalhou meu sono. Acordou comigo hoje e atrapalha o meu dia. Antes de sair pro trabalho, não me sentindo nem arumadinho nem cheiroso, sou salvo por meu velho salvador - Fernando Pessoa:
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
..............
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

terça-feira, 28 de abril de 2009

A arte de cruzar as pernas (ou ainda, a arte da espera)

A mulher tem várias armas para derrubar, ou pelo menos bambolear um homem, no jogo da sedução. Uma das mais eficazes é o cruzar de pernas. Com saia ou vestido, claro, nem se fala. Aliás, essa é uma distinção - saia e vestido – que está além da minha compreensão. Tudo pra mim é saia ou tudo é vestido. Uma mulher que, diante de espécime macho, saiba cruzar as pernas e, o que é mais perturbador, saiba descruzá-las, soma pontos valiosos na planilha da sedução. A imortalidade de Sharon Stone está garantida não pela sua obra, mas pelos cinco segundos de seu cruzar e, principalmente, descruzar de pernas.
Antes de tudo, mais importante que tudo, acima de tudo, quase tudo: é preciso calma nessa hora, digo, nessa arte. É preciso ser mesmo lenta, câmara lenta – slow motion, para quem está mais acostumado ao português moderno. Aliás, a calma, um jeito devagar de fazer tudo, irmã gêmea da delicadeza, deveria ser a norma de todas as condutas da mulher. Na verdade, creio que as mulheres são mais lentas por natureza, e, por favor, eu estou elogiando. As ligeirinhas, agitadas, que me perdoem, mas não são o melhor do gênero. Foram corrompidas. Esses tempos de velocidade, de potência, de gente máquina, esse cruzamento doido de alma com tecnologia, que acelera tudo, isso é coisa de macho, mas acabou atingindo a mulher. Mas no fundo, na essência, ela tem a calma. Porque a mulher conjuga, como o homem não sabe conjugar, o verbo esperar. Ela espera no bar, na festa, que o homem, normalmente já escolhido, venha conversar. Ela espera o sangue vir, depois espera ele ir. Se o sangue não vem, ela espera bebê. Nove meses de espera. Coisa que homem nenhum suportaria. Ela espera o homem vir. Rubem Braga escreveu aos 20 e poucos anos uma bela crônica sobre a mulher que espera homem. “Não importa que seja a esposa vulgar de um homem vulgar; e que no fim a história do atraso dele seja também vulgar, neste momento ela é a mulher esperando o homem”.
E quando um pneu do carro fura, a mulher simplesmente desce e ... espera alguém – homem, claro – para trocá-lo. No sexo, ela demora mais, e o homem, sem paciência, não espera como ela certamente esperaria. Depois, ela espera um papo carinhoso e ele não espera pra dormir. Até na hora da concepção se faz a diferença – 350 milhões de espermatozóides em louca carreira para chegar ao óvulo, que lentamente foi dos ovários para a trompa e lá, placidamente, espera o vencedor da corrida. O que não é diferente aqui de fora, onde o homem corre, corre, atrás de quem mesmo? Porra-louca dentro e fora.
Então, mulher, busque a calma se ela anda agitada dentro de você, que ela lhe pertence. A menos que você tenha 18 anos, ou por aí, porque aí é quase impossível. Vale para todas o que Afonso Romano escreveu sobre a mulher madura:

"Há uma serenidade em seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosas. A adolescente não sabe ainda os limites do seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muitos barulhos, joga muita água para os lados. Enfim, desborda. A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo de repouso da garça sobre o lago."

Vinicius, em Receita de Mulher já tinha dado o veredito: “É preciso que súbito tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada” . É isso. A mulher ao mover-se, e aqui, no caso, ao sentar-se, precisa parecer uma garça pousando. Leve, suave, esbelta, senão esguia. É que no cruzar e descruzar de pernas, a mulher se abre e se fecha. Porque quando uma mulher faz sexo, ela se abre em oferenda, ela se dá. E até nessa hora, sem pressa, ao contrário do desesperado macho. Veja a localização do sexo no homem e na mulher. O homem, arma em riste; a mulher, algo escondido - um lugar quente, úmido, pra dentro, estranho, muito diferente do sexo dele, pra fora, solto no mundo (agite antes de usar). Mulher é interior e tudo que isso implica - emoção, sexto sentido, mistério; homem é exterior, e tudo que isso explica.
Dito isso, minha amiga, calma sempre e em tudo, que esse bicho apressado chamado homem corre tanto justamente pra chegar aí – um regaço morno, um cafuné de mãos delicadas, a paz depois da correria, o sono abraçado numa nuvem. Então, mãos à obra. Aliás, pernas. Mas bem devagarzinho.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Com Chet, sofrer é quase um prazer

A madrugada avança, a noite vai se indo. E aí? Não mudou nada. “Inútil dormir que a dor não passa”. Tampouco ficar acordado. Talvez esse seja o momento mais comum aos mortais que gostam de escrever e passam momentos de solidão, dor, tristeza, desespero – desafiar palavras, desafogar palavras, desenterrar palavras que traduzam o interior e enfrentem o exterior. Sinto-me humanamente igual a todos e tantos quantos já enfrentaram essa “insônia do tamanho do mundo”, empunhando palavras ou não. É verdade que nem todos nem tantos partem para essa batalha ouvindo algo como Chet Baker tocando e cantando I fall in love too easily, como faço agora. O que é bom, porque muitos talvez não suportassem. O que também é mau, porque muitos talvez suportassem e partissem para ouvir Chet estraçalhar Misty ou ainda Everything happens to me, na versão mais longa com o quarteto de Charlie Haden. E se chegassem a esse momento atingiriam o nirvana da angústia, quase o prazer do sofrer. E paralelo à grande dor sentiriam, quem sabe, como eu agora, uma profunda piedade dos que dividem essas horas com todo o lixo que se produziu e se produz para cantar e chorar o amor/desamor, a solidão, a tristeza – coisas como Bruno e Marroni, ou mesmo Renato Russo, poetinha menor que escreveu versinhos bobinhos para adolescentes em crise eterna com os pais e o mundo, mesmo passando dos 40. Ah!, licença então: que coisa boa sofrer ouvindo Chet. Sade? Sabe, dá até um orgulho, uma coisa boa mesmo, assim do tipo puxa, pelo menos a indústria cultural e sua cocacolização do mundo, com sua produção em série de mais do mesmo sempre, ainda não me capturou de todo. Daí eu estaria aqui ouvindo um popizinho gravado pelo Latino ou uma versão pseudamente cult de Ivete Sangalo ou Daniela Mercuri, ou... sei lá, são todas iguais - parece que desceram do mesmo caminhão de som ou saíram do mesmo programa dominical. O que quero dizer é que a dor não pode ser a mesma. Quem chora ouvindo “tô fazendo amor com outra pessoa/ mas meu coração vai ser pra sempre teu”, não pode sofrer igual a quem chora escutando “não, solidão, hoje não quero me retocar/nesse salão de tristeza onde as outras penteiam mágoas/deixo que as águas invadam meu rosto/gosto de me ver chorar/finjo que estão me vendo/eu preciso me mostrar”, do Chico. Quem sofre ouvindo "eu sou dela ela é minha/ e sempre queremos mais/ se me manda ir embora/ eu saio pra fora/ ela chama pra trás", não pode sentir igual ao ouvir "vem me fazer feliz/ porque eu te amo/ você deságua em mim/ e eu oceano/ e esqueço que amar/é quase uma dor", do Djavan.
Sentimento e gosto se educam e nossa juventude, de todas as idades, foi tão educada dentro do igual e do medíocre - que melhor seria dizer tão deseducada -, tão sem ídolos que valham a pena, tão sem referências para tudo que não seja descartável, fútil, que dói vê-los sarados, fashion, bêbados, cantando "um minuto é muito pouco pra poder falar/ a distância entre nós não pode separar" e... se achando. Ei cara!, até pra sofrer existe beleza, até no sofrer existe estética, e a história da arte, desde os gregos, mostra isso.
Estou naqueles momentos em que como disse Drummond, não há nada no mundo que justifique o ponto de exclamação.
Estou mais para Pessoa:

Não há na travessa achada o número da porta que me deram.
Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...



A beleza toca a dor, que toca Chet, que toca e me toca. Percebo agora que algo mudou, sim. Talvez esse seja o momento que vivo mais incomum aos mortais que gostam de escrever e passam momentos insones de solidão, tristeza, desespero. Sofro quase com gozo. Me vem Leminski: “Um homem com uma dor é muito mais elegante”. Sei que não sou melhor do que ninguém, mas nesse momento, com essa música e com essa dor que carrego, me sinto. Desculpe, amanhã eu volto a me achar o último da fila. Hoje, Chet me deu dignidade e superioridade na dor. Coisa de beleza. Me deu a diferença nesse mundo de iguais. Coisa de sentimento. A melhor arte me deu uma melhor dor. Coisa de Chet.

Um pouco de Chet

Se você conhece e gosta de Chet Baker, isso é bom pra sua alma. Se você ama Chet, como eu, encare o cara - a música dele - como um presente divino. Se não conhece, nunca é tarde pra se redimir e acalmar os deuses. No Google existem mais de 2 milhões de sites sobre Chet baker. Apresento aqui alguns onde você encontra um pouco da vida maluca, desregrada e desgraçada desse cara que aos 25 anos causava desmaios nas mocinhas, pela sua beleza; e aos 50, com cara de 100, causava espanto, pela feiura. Álcool, drogas, brigas de perder os dentes, prisões, Chet Baker teve uma vida tão tumultuada que parece incrível que tenha mantido sua arte num nível exepcional de leveza e beleza. Como uma alma tão amargurada podia produzir uma música tão suave, tão calma, tão sublime? Onde um camarada tão transtornado que chegou ao ponto de voar por uma janela e se desmanchar numa calçada encontrava paz pra fazer a música que fazia?
Bem, se quiser mais de Chet clique aqui ou aqui. Para ouvir I fall in love too easily, vá ao Youtube abaixo.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Chuva: diário de um molhado

Chove. E a vida fica perfeita quando me sobe um cheiro de café forte do apartamento daquela mulher que mora sozinha com seu cachorro. Fico imaginando ela tomando seu café, contemplando a chuva pela janela enquanto seu cachorro fica sentado olhando a cena e de repente espirra. A chuva tem poder! Não falo das catástrofes, tampouco dos resfriados. Falo desse sentimento que ela nos cria. Essa umidadezinha que parece que borrifa nossa alma e lhe tira um pouco da secura que a vida, dura e sem sentido que levamos, instala nela. Esse cheiro de terra, que nos remete, inconscientemente, atavicamente, a um passado muito distante de quando ainda corríamos pelos campos e pradarias atrás de alces e gazelas e vivíamos com os pés fincados nela e dormíamos sentindo seu coração. Esse cheiro de água, que não tem cheiro, dizem, mas que a gente sabe que tem - cheiro de lembrança. É um cheiro que traz à memória momentos bonitos, amargos, alegres, tristes... momentos. Pense e você vai encontrar momentos inesquecíveis marcados pela chuva! A água repentina que caiu quando você chegava em alto estilo numa cerimônia de luxo. A tarde em que chovia muito e você amou inesquecivelmente aquela pessoa que fez folia em seu corpo, cujos exércitos invadiram o seu país e correu da sua vida sem dizer com pernas você devia seguir. A batida no trânsito, por culpa do asfalto molhado. O dia aquele em que sua adolescência ganhou o primeiro "eu te amo" escrito num vidro embaçado. Escolha um momento de tantos e cante à chuva, que ela merece todo o canto e louvor.
Eu me lembro aqui de dois momentos. Um, eu tinha sete anos e ia pra escola. Naquele tempo a gente usava capa-de-chuva, galocha e, ainda, guarda-chuva. A gente se preparava pra enfrentar a chuva. Mas nessa manhã eu não tinha saído nem de capa, nem de galocha, nem de guarda-chuva, porque minha mãe achou que não fosse chover. Às vezes ela errava, como errou prevendo que eu seria um grande homem, muito rico e importante. Naquele dia, quando me deparei com a chuva, a saída foi saltitar entre uma marquise e outra. Mas quando cheguei na quadra da escola, surpresa: não tinha mais marquise na rua. E cheguei todo molhado. E pior: molhei o caderno de caligrafia que eu amava. Chorei e pra sempre me lembrarei da chuva batendo no meu rosto, se misturando com as lágrimas, uma cena que se repetiu muitas vezes depois... chuva e lágrimas. A gente passa a vida pulando de uma marquise pra outra, sai pra chuva sem capa nem nada e não quer se molhar. Mas não adianta. A gente acaba perdendo o emprego de que gostava tanto ou precisava muito. A gente tenta não sofrer, tenta até não amar. Mas não adianta, um dia o coração acelera, a alma dilacera. Um dia fica só, sentado na calçada do mundo. Um dia, enfim, não tem marquise e a gente se molha e molha o caderno de caligrafia. A outra lembrança é de uma madrugada em que eu e Manon, uma moça tão linda como é raro seu nome, esperávamos táxi na esquina da minha casa. Eram 4h. De repente, chuva. Eu, elegantemente, tirei minha jaqueta jeans e armei uma proteção para nós. Ficamos bem juntinhos. Eu sentia o perfume do seu corpo, seu cabelo me reçova, seu hálito de vinho misturado com chiclete acariciava minha emoção. Naquela noite tínhamos saído pra jantar. Bebemos, fomos pro meu aparamento, bebemos, conversamos muito, rimos muito. E foi só. E estranhamente foi uma noite inesquecível, porque não acontecendo nada, aconteceu tudo. Das outras que aconteceu tudo, não lembro nada. Nunca mais vi Manon, mas ela viverá pra sempre em mim. Porque não acontecendo nada, aconteceu tudo. E porque chovia.

terça-feira, 7 de abril de 2009

O motel, o doce da mãe e dia de hoje

Hoje é o dia de uma pessoa muito especial para você, mas talvez você nunca tenha parado para pensar nisso. O simples fato de você estar me lendo já mostra quanto essa pessoa é importante para você. Se ela não existisse, nós não estaríamos, eu e você, nessa convivência tão íntima - estamos só nós dois aqui metidos nessas linhas, não? -, e tão anônima ao mesmo tempo - não sei em que lugar estamos nos encontrando: na sua casa, no trabalho, num bar; pior, no banheiro? E não sabemos nada um do outro: peso, cor, idade, renda; pior, muito menos sabemos se vamos nos encontrar de novo. Essa pessoa tão especial está presente em todos os dias da sua vida. Às vezes lhe conta coisas ruins, coisas que você preferia não ouvir da boca de ninguém; outras lhe dá alegria como só ela sabe, contando coisas bonitas, maravilhosas, que você nem esperava ouvir de alguém. Por vezes essa pessoa é fofoqueira, metida na vida dos outros e até na sua; outras, é maldosa e mesmo que ela não reconheça isso, faz e diz coisas que envergonham as outras como ela. Mas eu não tenho a menor dúvida de que você não tem dúvida nenhuma sobre preferir a vida e o mundo com essa pessoa. Aliás, você não saberia viver sem ela. Estou falando de quem? Tchan, tchan, tchan, tchan, tchan: do jornalista !
Eu não tenho dúvidas também de que ele é Deus e diabo, às vezes ao mesmo tempo. Mas pense comigo. Vamos pegar só um exemplo: o caso Nardoni. Tudo bem, que a cobertura não precisava ser de 48 horas por dia, mas imagine o contrário: não ver nem saber nada disso. Imagine sua vida sem o Fantástico nos domingos mornos em que não aconteceu nada na sua vida, nem mesmo aquela sobremesa idolatrada na casa da mãe. O Fantástico garante a emoção do final de semana. E mais, garante suas conversas na segunda-feira, na fila do banco, no trabalho, ou até mesmo com aquelas certas pessoas das suas relações, sonolentas de dormir demais e ver e viver de menos. Imaginemos a seguinte situação: a tv mostrou à noite uma reportagem interessantíssima que você não viu porque estava no motel vivendo emoções como aquelas que o Roberto cantou, ou porque estava assistindo um filme muito muito bom ao lado de alguém melhor do que o filme; ou ainda porque estava se deliciando com aquela sobremesa tão famosa e já falada na casa da mãe. Pois bem, a primeira pessoa que lhe perguntar: “você viu a reportagem aquela no Fantástico?” Você diz: “não”. Simplesmente. Quando a segunda pessoa perguntar, você já vai falar um pouco mais: “ Pois é, sabe, eu estava fora...” E já vai ficar meio que se explicando. Quando a terceira pessoa vier lhe perguntar se você não viu a tal reportagem, você já vai estar se odiando por ter ido ao motel, ou à locadora ou à casa de mamãe. Por quê? Porque a mídia é sua referência, lhe dá não só assunto, mas identidade, lhe faz existir no mundo, que é no fundo, o mundo criado muito muito por ela. Claro que isso é tema para discussão e produção intelectual sem fim. Existe até um livro chamado Ansiedade de informação, de Richard Wurman, tratando de como sofremos porque não vimos, ou não lemos o que os outros leram, e também porque não conseguimos ver, ler, tudo que o mundo – aquele mesmo criado pela mídia – diz que devemos ver, ler. Mas aqui quero só marcar esse dia que é o Dia do Jornalista, uma pessoa muito importante na sua vida. Só agora confesso que sou um deles. E, ao mesmo tempo, que homenageio, agradeço: obrigado pela parte que me toca. E a parte que me toca é você, leitor, leitora, razão de existir do jornalista. Logo, você também é uma pessoa muito importante para essa pessoa, o jornalista. Deixando então todas as discussões e produções intelectuais/literárias para depois, saúdo a nós dois, eu e você, por construirmos uma coisa tão mágica e bonita e humana – a comunicação. Porque se hoje é, “calendariamente” falando, o Dia do Jornalista, verdadeiramente, hoje é o Dia da Comunicação.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A solidão das estrelas

Tarde da noite. Mais de 1h30min. Vou caminhando pela rua, sem pressa, no rumo de casa. Ouço apenas ruídos distantes – um carro que arranca com força, talvez um namorado tentando mostrar que ele tem a força daquela máquina; um cachorro latindo, talvez por absoluta falta de sono, quem sabe irritado com aquele tolo namorado. E ouço meu próprio caminhar, que no silêncio fica forte, decidido, como não sou. Distraído, penso em quase nada. Sigo em paz com o sono e os sonhos das casas e apartamentos. E assim penso que a noite dorme em paz.
De repente um baque forte me faz sair daquele estado em que a escuridão e o silêncio se apoderavam de mim. Em seguida gritos, vozes alteradas, gente se ofendendo. Vêm da janela de uma casa pobre, de tábuas secas, descoloridas pelo tempo e carcomidas pelas goteiras de tantas chuvas. Apresso o passo. Chego mais perto. É a velha quitandeira, que mora na casa, que grita agora. É ela, sempre tão doce, tão risonha, discutindo com seu filho, que, dizem, anda envolvido com drogas.
Meus pensamentos voam. Penso em quantos mundos trágicos, infelizes, se escondem atrás dessas janelas cerradas da noite e desses sorrisos abertos do dia. Com as estrelas, penso, somos trazidos à realidade de nossas dores, nossa solidões, nossas dificuldades diante disso que se chama viver – essa coisa fácil como respirar e difícil como aceitar a morte. Com a escuridão e as estrelas somos trazidos à realidade de nossa pobre condição de seres humanos confusos e perdidos num planeta perdido numa galáxia - perdida em meio a milhões de outras galáxias – que tem mais de cem milhões de estrelas perdidas. Que tristeza penso, ao mesmo tempo tão pequena, tão solitária - desesperadoramente solitária – e infinita dessas janelas que sofrem e não dormem. E que no outro dia se abrem doces e risonhas. Por fora. Mas continuam tristes e baldias. Por dentro. Apresso o passo, quero chegar logo em casa. Preciso dormir. Quando abro o portão, olho para as janelas da minha casa. Já sei que não vou dormir.

domingo, 29 de março de 2009

A virgindade de Sandra

Sandra, uma jovem universitária de 19 anos não conseguia mais conviver com a sua virgindade. A cada segunda-feira ela inventava para as suas amigas, todas na faixa de 18-20 anos, histórias sensuais e sexuais, que vivera no final de semana. As amigas ouviam entusiasmadas e logo contavam as suas aventuras e performances também. Sandra fantasiava, para não dizer mentia. Assim como as amigas acreditavam nela, ela também acreditava nas amigas. Mas aquela situação lhe incomodava. Na verdade, ser virgem não lhe incomodava, íntima e individualmente. Ser virgem lhe incomodava enquanto pessoa no mundo, isto é, enquanto pessoa em relação com o mundo que não era mais virgem, um mundo que não via mais na virgindade um valor; pelo contrário, um mundo que zombava da virgindade com frases do tipo “virgindade dá câncer” e “virgem, eu? Só no signo, graças a Deus”. Todo o domingo à noite, Sandra ao deitar ficava elucubrando as histórias que narraria no dia seguinte. Até que, em conversa com uma rara amiga conhecedora de seu “problema”, e que morava em outra cidade para estudar, resolvera armar um plano para acabar de vez com aquela situação. Sandra iria passar o final de semana com a amiga e na noite de sábado mesmo acabaria com aquela realidade, acabaria com a sua virgindade. E assim aconteceu. Lá foi ela para o apartamento da amiga. E na noite histórica de sábado, antes de deixarem o apartamento e irem pra balada, as duas arrumaram a cama com o melhor lençol, colocaram champagne na geladeira e deixaram de prontidão um cd de música suave. Só faltava escolher entre os desconhecidos que perambulavam pela noite, entre copos e olhares, aquele corpo que faria para sempre parte de sua vida e que ela, a poucas horas de um acontecimento tão marcante, desconhecia quem fosse.
E assim se deu. Na descontração juvenil que reveste a noite, onde os corpos falam muito mais do que as falas, ou seja, onde o olho é muito mais importante do que o ouvido, e os hormônios valem muito mais do que os neurônios, encontrou um jovem bonito fisicamente, universitário como ela, e com algum assunto. Ficou com ele até certa hora e depois foram para o apartamento da amiga. Na segunda-feira, finalmente, ela pode contar uma história real, omitidos, claro, os detalhes da timidez, da insegurança e do desprazer. Mas isso não importava. O que importava era que finalmente ela estava inserida no mundo, tal qual o mundo pedia. Como sujeito, ela se sujeitara ao mundo. E o que podia ser uma vivência rica em afeto e troca, ficou sendo um ritual de acasalamento para inserção social.
A pergunta que fica: Sandra é dona do seu corpo? Ou antes: Sandra é dona dos seus pensamentos? Me assusta o modo fácil com que as pessoas entram nas modas e modos impostos pelo mundo, sem a menor reflexão. Ainda mais nesses tempos da deusa Mídia. Minha avó casou virgem, passou a vida servindo o marido, a quem disse que aprendeu a amar, dormiu com esse único homem mais de 50 anos e jamais teve um orgasmo, que ela achava “isso de sexo uma nojeira e sem-vergonhice”. Morta há pouco, achava as jovens de hoje umas perdidas, que casavam por amor e separavam logo depois. Cada um é filho do seu tempo, sem dúvida. Ou vítima do seu tempo, melhor. Minha vó só estudou até a terceira série, porque mulher não precisava estudar. Seu irmão se formou em direito e foi grande advogado, porque era homem. E hoje, com toda a informação e a possibilidade de conhecimento dadas às mulheres, não consigo saber quem foi menos ela mesma, quem foi mais vítima do seu tempo, minha vó ou Sandra? Quem mais perdida, no sentido de viver a vida que o mundo manda e não a sua? Sei não, mas desconfio que Sandra seja mais pobre diabo.

sexta-feira, 27 de março de 2009

A música do meu Brasil II

Continuando a mostrar um pouco da alma brasileira que fui descobrindo nesse meu andar por aí, aí está Waldonis, um sanfoneiro que merece ser ouvido e admirado. A música fala dessa outra cidade maravilhosa, que é Fortaleza, onde vivo e me encanto todos os dias com seu canto e seus cantos.

quinta-feira, 26 de março de 2009

A amada rotina (quem disse que ela atrapalha?)

As férias se foram e já voltamos todos ao normal, ao feijão com arroz do nosso dia-a-dia. Mesmo aqueles que não tiveram férias, de um modo ou de outro acabaram envolvidos pelo clima delas, pelo astral de verão. E tiveram suas rotinas alteradas. Agora é tudo de novo outra vez. O que não nos damos conta é que, na verdade verdadeira, apenas trocamos de rotina. Trocamos feijão com arroz por outro prato, mas também rotineiro, com raras exceções para quem sobe o Aconcágua, dá uma volta de bicicleta pelo continente, ou vai passar uma temporada em Nome, uma cidadezinha no fim do Alasca, já no Pólo Norte. De resto, o que mais acontece, é que trocamos nossa cidade por alguma outra, à beira-mar. Uma rotina por outra.

As pessoas suspiram, mergulhadas no seu mundo cotidiano: “não agüento mais essa rotina”. Uma frase já cimentada na nossa cultura é: “a rotina acaba como o casamento”. Nananina: agüentamos muito bem essa rotina. E mais: ela salva as nossas vidas. O que acaba com nossas vidas é a monotonia, isto é, quando a rotina se transforma em algo chato, pesado, sufocante.

Façamos um teste. O que você faz logo que acorda? É rotina. Você já se deu conta de que se levanta e faz tudo sempre igual? E o banho? Primeiro lava isso, depois aquilo e vai lavando ... sempre na mesma seqüência. Na mesa em casa, você tem um lugar preferido, certo? Na sala, pra ver tv, idem, certo de novo? E para dormir, não tem um lado e um jeito preferidos?

Na sala de aula, o mesmo lugar. No bar, o mesmo lugar. Alias de preferência no mesmo bar. Para o supermercado vale a regra, porque não tem coisa que dê mas na paciência da gente, do que procurar o sabão em pó e não saber onde está, querer lâmpada e não encontrar nem o remarcador de preços para informar. E o seu prato de almoço/janta? Não me diga que um dia coloca o feijão embaixo do arroz, no outro o contrário e, no terceiro, o ovo vai para o subterrâneo?

O bom do verão não é ficar na vagabundagem riscando a areia ou passando o dedo no copo suado de cerveja? Ou, ainda, ficar tomando uma rica duma caipirinha ao sair da água, bebendo junto as garotas da sukita que passam? Então? Rotina.

O bom do inverno não é chocolate quente, cobertorzinho de orelha e filme daquele tipo que precisam dois para operar o dvd? Rotina da melhor qualidade.

Até quando você namora está lá a velha e boa rotina. Ninguém agüenta ipsilone duplo e canguru perneta todo dia, ou toda noite. Aliás, como já escrevi aqui: o que torna o amor bonito, doce e até mesmo eterno, senão a rotina? A fogueira da paixão, com toda a sua excitação, mas também com toda a sua insegurança e incerteza, nos queima logo, se não se transforma num braseiro que aquece a rotina da relação. Remember Mario Quitana, também já citado: “Amizade é quando o silêncio não se torna incômodo. Amor é quando o silêncio se torna cômodo”. Amor e rotina andam juntos, não se iluda. Nós só existimos felizes da vida na rotina. Do contrário, a gente não suportaria a família, o emprego, o curso, a cidade, os amigos – tudo isso é o nosso cotidiano. Então, bem vindo a rotina do resto do ano. Sem monotonia.