quinta-feira, 17 de novembro de 2016

DA SÉRIE "MINHAS CANÇÕES" : TAKE FIVE, COM DAVE BRUBECK


Take Five  é uma das obras-primas do jazz, e pra mim, a obra-prima de Dave Brubeck. Ele gravou essa música em 1959, com o Dave Brubeck Quartet. Além da melodia "diferente", ela tem um solo antológico do baterista Joe Morello, com cerca de dois minutos. Se você não conhece, aproveite para se deliciar com música da melhor qualidade. Feche os olhos e, quando "ver", estará acompanhando com os dedos. Ela tem o compasso 5/4, de onde o nome. Brubeck não  foi o primeiro a usar essa métrica, mas foi o que divulgou-a para o  mundo.
Brubeck foi um gênio. Nasceu em 1920 e morreu 91 anos depois. Até nisso extrapolou. Aprendeu a tocar piano aos 4 anos, mas não gostava de método e nunca aprendeu a ler partituras. Na faculdade quase foi expulso quando descobriram que ele não lia música. Mas muitos professores o defenderam pelo talento. A faculdade receava que isso pudesse causar um escândalo, afinal como um aluno da faculdade de música da University of the Pacific não sabia ler partituras? A instituição só aceitou em lhe dar  o  diploma  se ele concordasse em nunca dar aulas de piano. Claro que ele topou, e ganhamos um gênio.
O autor da canção é Paul Desmond, que doou os direitos de toda sua obra, incluindo Take Five, à Cruz Vermelha. Bora ouvir (e bater os dedos).


segunda-feira, 14 de novembro de 2016

QUANDO AS FILHAS VÃO (ou, SÓ PRA QUEM TEM FILHAS ADOLESCENTES)


Vossos filhos não são vossos filhos (...)/ Vêm através de vós, mas não de vós/ Pois suas almas moram na mansão do amanhã/ Que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho(...) (Gibran)

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos (...) deveríamos ter ido mais vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de colagens, posteres e agendas coloridas(...) (Sant’Anna)



Vendo minha filha sair pra uma festa, toda produzida, linda, não posso ficar calado. Mas fiquei. Explico: embora, sem falsa modéstia, sabendo que escrevo bem e o motivo era mais do que inspirador, fiquei tão, digamos, perturbado, encantado, assustado com a força e a magia do tempo, que não consegui escrever nada. Só me vieram à cabeça dois textos que, agora sim, modestamente, eu não faria melhor. E quero deixá-los aqui para deleite e emoção  de todos que tem filhas adolescentes/jovens. Se você conhece vale ler de novo, se não, prepare o seu coração, principalmente para o texto do poeta e cronista Affonso Romano de Sant’Anna. Dizer que passa um filme na cabeça da gente, além de lugar comum, não diz a verdade. Passa uma série inteira.
Gibran Khalil Gibran, ensaísta, filósofo, prosador, poeta, conferencista e pintor de origem libanesa e seu poema sobre os filhos... bem, é ler, refletir. Eles já estão no palco! É hora de sentar na primeira fila e assistir perturbado, encantado, assustado.


Antes que elas cresçam
Affonso Romano de Sant'Anna

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.

É que as crianças  crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. Crescem como a inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os estupros dos preços, os disparos dos discursos e o assalto das estações, elas crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância.

Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem, de repente.

Um dia se assentam perto de você no terraço e dizem uma frase de tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.

Onde e como andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu? Cadê aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do maternal?

Ela está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça. Ali estão muitos pais, ao volante, esperando que saiam esfuziantes sobre patins, cabelos soltos sobre as ancas. Essas são as nossas filhas, em pleno cio, lindas potrancas.

Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão elas, com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros ou, então com a suéter amarrada na cintura. Está quente, a gente diz que vão estragar a suéter, mas não tem jeito, é o emblema da geração.

Pois ali estamos, depois do primeiro e do segundo casamento, com essa barba de jovem executivo ou intelectual em ascensão, as mães, às vezes, já com a primeira plástica e o casamento recomposto. Essas são as filhas que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias e da ditadura das horas. E elas crescem meio amestradas, vendo como redigimos nossas teses e nos doutoramos nos nossos erros.

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.

Longe já vai o momento em que o primeiro mênstruo foi recebido como um impacto de rosas vermelhas. Não mais as colheremos nas portas das discotecas e festas, quando surgiam entre gírias e canções. Passou o tempo do balé, da cultura francesa e inglesa. Saíram do banco de trás e passaram  para o volante de suas próprias vidas. Só nos resta   dizer “bonne route, bonne route”, como naquela canção francesa narrando a emoção do pai quando a filha oferece o primeiro jantar no apartamento dela.

Deveríamos ter ido mais  vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir  sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de colagens, posteres e agendas coloridas de pilô. Não, não as levamos suficientemente ao maldito “drive-in”, ao Tablado para ver “Pluft”, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas.

Elas cresceram sem que esgotássemos nelas todo o nosso afeto. 

No princípio  subiam a serra ou iam à casa de  praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, natais, pás
coas, piscinas e amiguinhas. Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de sorvetes e sanduíches infantis. Depois chegou a idade em que subir para a casa de campo  com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma aqui na praia e os primeiros namorados. Esse exílio  dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos bíblicos. Agora é hora de os pais na montanha  terem a solidão que queriam, mas, de repente, exalarem contagiosa saudade daquelas pestes.

O jeito é esperar. Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por isso, os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.

Por isso, é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.



Os Filhos
            Gibran Khalil Gibran. Do Livro "O Profeta"

Uma mulher que carregava o filho nos braços disse: "Fala-nos dos filhos."
E ele falou:
           
Vossos filhos não são vossos filhos.           
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.           
Vêm através de vós, mas não de vós.           
E embora vivam convosco, não vos pertencem.           
Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos,           
Porque eles têm seus próprios pensamentos.           
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;           
Pois suas almas moram na mansão do amanhã,           
Que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.           
Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós,           
Porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados.           
Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas.           
O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força          
Para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe.           
Que vosso encurvamento na mão do arqueiro seja vossa alegria:           
Pois assim como ele ama a flecha que voa,           
Ama também o arco que permanece estável. 


quinta-feira, 3 de novembro de 2016

CORREMOS TANTO PRA FICAR PARADOS


(Excerto do meu mestrado como uma contribuição para a reflexão sobre a velocidade de nossas vidas “paradas”)





   Vivemos hoje o tempo da velocidade absoluta. A velocidade com que fazemos transferências bancárias, é a mesma que nos coloca on-line com o mundo pelo telefone celular, ou pela Internet, é a velocidade com que trocamos as cartas pelos e-mails, ou descartamos amigos e amores, ou trocamos de lugares (não-lugares) e empregos (desempregos). A tecnologia, notadamente a da indústria cultural, e nessa com destaque para o emaranhado de redes infoeletrônicas, satélites e fibras óticas, nos coloca diante de um mundo impensado.

Coexistimos sob o signo da ultra velocidade [...]. Diante de nossas retinas, sucede-se um turbilhão de imagens, sons e dados que ora nos convence de que somos privilegiados pela abundância, ora nos atordoa com a impressão de que jamais conseguiremos reter uma ínfima parte dessa aluvião informacional. Porque tudo é perturbadoramente veloz e imediato. O tempo real se dilui e se restaura sem direito a intervalos. As informações, mal chegaram, já estão de partida [...]. Os controles remotos, por sua vez, são acionados freneticamente. Em Mídias sem limite [...], Todd Gitlin [Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 102] cita pesquisa segundo a qual os controles são acionados até 107 vezes por hora pelos três quartos dos norte-americanos com menos de 30 anos que assistem diariamente aos noticiários televisivos.[1]
Kundera no romance A lentidão (1995, p. 5-6) nos faz desacelerar e pensar quando narra um motociclista ultrapassando o personagem que viaja devagar, de carro:
[...] o homem curvado em sua motocicleta só pode se concentrar naquele exato momento de seu vôo; agarra-se a um fragmento retirado tanto do passado quanto do futuro; é arrancado da continuidade do tempo; está fora do tempo; em outras palavras está num estado de êxtase [...]. A velocidade é a forma de êxtase que a revolução técnica deu de presente ao homem. Ao contrário do motociclista, quem corre a pé está sempre presente em seu corpo, forçado sempre a pensar em suas bolhas, em seu fôlego; quando corre, sente seu peso, sua idade, consciente mais do que nunca de si mesmo e do tempo de sua vida. Tudo muda quando o homem delega a uma máquina a faculdade de ser veloz: a partir de então, seu próprio corpo fica fora do jogo e ele se entrega a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si, velocidade êxtase.
Mais adiante, Kundera (1995, p. 6) pergunta:
Por que o prazer da lentidão desapareceu? Ah, para onde foram aqueles que antigamente gostavam de flanar? Onde estão eles, aqueles heróis preguiçosos das canções populares, aqueles vagabundos que vagavam de moinho em moinho e dormiam sob as estrelas?

Por sua vez, Virílio (apud Sant’Anna, 2001, 16) “não cessa de lembrar o quanto ‘a corrida é eliminatória’, polui distâncias, anula intervalos, suscita muito mais o uso de reflexos do que da reflexão”. E Barthes (1985, 62) vai ser categórico: “a 2.000 por hora, em atitude constante, nenhuma sensação de velocidade”, ou seja, em velocidade tamanha, a impressão é de que se está parado. Estranha matemática essa que o homem matematizado pela razão vive hoje: é preciso ter pressa, correr, a tecnologia exige velocidade, no teclado, no acelerador, na academia, mas tanto mais corre mais se tem a sensação de que se está atrasado, perdendo o pique, perdendo a história, perdendo o emprego, o casamento, perdendo a vida. Como lembra Tucherman (1999, 15) “é que parecemos estar atrasados não em relação ao nosso futuro, mas em relação ao nosso próprio presente”. Estranha lógica que coloca todos na mesma estrada, com os mesmos objetivos, com os mesmos pensamentos sem saber porque os pensa, uma uniformização “que faz parte do próprio processo da indústria cultural, imposto a uma sociedade que, apesar de toda a racionalização, permanece irracional” (Hermann, 2005 [no prelo]
O mundo globalizado, a cultura mundializada, o mundo todo envolto num só manto de pensamento único, a eletrônica, a informática tudo isso faz com que a vida seja acelerada... para o vazio. O homem da cidade anda mais rápido do que o homem do campo, se alimenta mais rápido, em tudo ganhou velocidade – até mesmo no sexo conceituou a “rapidinha”, o ato sexual veloz, por vezes feroz, e sem comprometimento – mas estranhamente, parece estar com o freio de mão puxado. Corre e parece não avançar. Corre para chegar no semáforo, corre para chegar na fila, corre para ficar parado. E talvez apenas nesses momentos o homem se dê conta do quanto sua vida se vai e se esvai, o que foi muito bem captado por Paulinho da Viola, na sua canção Sinal fechado, onde dois motoristas (homens instrumentalizados) conversam, rapidamente, à espera do sinal abrir:
Olá, como vai?
Eu vou indo e você, tudo bem?
Tudo bem, eu vou indo, correndo
Pegar meu lugar no futuro e você?
Tudo bem, eu vou indo em busca
De um sono tranqüilo, quem sabe?
Quanto tempo?
Pois é, quanto tempo?
Me perdoe a pressa
É a alma dos nossos negócios
Qual, não tem de quê
Eu também só ando a cem
Quando é que você telefona
Precisamos nos ver por aí
Pra semana prometo, talvez
Nos vejamos, quem sabe?
Quanto tempo?
Pois é, quanto tempo?
Tanta coisa que eu tinha a dizer
Mas eu sumi na poeira das ruas

Eu também tenho algo a dizer
Mas me foge a lembrança
Por favor, telefone, eu preciso
Beber alguma coisa rapidamente
Pra semana
O sinal





[1] Do texto de Denis Moraes A vida na era da saturação midiática, publicado na   revista virtual Ciberlegenda, número 12, 2003, da Universidade Federal Fluminense e disponível no site: http://www.uff.br/mestcii/denis10 .htm (27/07/2004).

sábado, 1 de outubro de 2016

FIM DE SEMANA


Chegou o fim de semana.
Página em branco pra escrever
Veja lá o que você vai fazer
Dê preferência à paz, à beleza e à poesia
Muito mais que às garrafas vazias.


sábado, 17 de setembro de 2016

DA SÉRIE "MINHAS CANÇÕES" - TOM WAITS, O BUKOWSKI DA MÚSICA


Maluco, estranho, insólito, extravagante, e pra mim genial. Desconhecido pela maioria esmagadora dos brasileiros é músicoinstrumentistacompositorcantor e ator norte-americano. Sua voz grossa e rouca e suas letras esquisitas e intrigantes, sem falar na música, marcam a personalidade de sua música. Fumante e beberrão seria o Bukowski músico. Não por acaso que é grande amigo de Johnny Deep, outro doidinho. Waits possui uma considerável obra, constituída de quase 30 álbuns (incluindo álbuns de estúdio, compilações e álbuns ao vivo), e mais de 50 participações diretas (como ator) e indiretas (compondo trilhas sonoras) em filmes. Já foi indicado a um grande número de prêmios musicais, tendo ganhado o Grammy Awards por dois álbuns: Mule Variations e Bone Machine. Oito milhões já viram esse vídeo. O que prova que não estou sozinho. 





terça-feira, 13 de setembro de 2016

NA REDE DO TEMPO


A gente deitava na rede entre os livros
Tempão balançando,
jogando conversa fora
E lá fora
O vento zunia
na janela
eu era feliz e sabia
ela que não  era
e não sabia.
Perdeu tempo
Ganhei tempo

Contra-tempos

terça-feira, 6 de setembro de 2016

ESTAMOS FICANDO SURDOS DE NÓS MESMOS

(Escrito para OBVIOUS, o maior site de cultura cooperativa em língua portuguesa)

Cage e Satie fizeram peças para não se ouvir. O primeiro, com 4’33 queria que se “ouvisse” o silêncio que o som do silêncio musical produzia; o segundo queria que a música suplantasse o silêncio que se abate sobre as conversas e sobe os ruídos do mundo. Num tempo em que vivemos mergulhados e bombardeados por sons de toda ordem, seja no trânsito, nos fones de ouvido, na gritaria das ruas, nas mensagens e posts das redes sociais, é interessante pensar sobre o silêncio, principalmente o silêncio dentro de nós. Estamos ficando surdos de nós mesmos.

Imaginemos essa cena. Numa sala de concerto o pianista senta-se ao piano, levanta a tampa do teclado, acomoda-se, ajeita sua casaca, exercita os dedos dedilhando o ar, folheia a partitura, repousa as mãos sobre o teclado sem emitir som e, por exatos 4 minutos e 33 segundos não toca absolutamente nada. A obra 4’33, de John Cage, compositor norte-americano revolucionário de meados do século XX, é assim mesmo: para se ouvir o silêncio. Por alguns minutos o púbico permanece quieto, esperando... Logo a plateia  se impacienta e ouvem-se murmúrios e burburinhos. Que palhaçada é aquela?  Alguns se perguntam, perguntando para quem está do seu lado. Já não há mais silêncio. Cage leva ao extremo, com 4’33, o debate sobre o tempo na música e, por extensão sobre a própria liberdade de criar, que tanta polêmica gerou a partir de textos críticos de Adorno sobre a obra de Stravinsky, que o frankfurtiano criticara. 
No início do século, um outro músico, o francês Erik Satie, de quem Cage é tributário, pensa a música como um objeto, um móvel para o espaço onde as pessoas conversam, almoçam. Ele chama de Musique d'Ameublemen, música-mobília. Certa vez, no intervalo de uma peça de Max Jacob ele resolve apresentar sua obra “mobília”. Distribui pelos cantos da sala um piano, três clarinetes e um trombone, que tocam fragmentos musicais desconexos. O público, cercado por estes sons desconcertantes, passa a ouvir em silêncio educado. Exatamente o contrário do que Satie queria. Não se contendo, ele determina: "Falem! Mexam-se! Façam qualquer coisa, mas não escutem!". Era uma música para preencher o ambiente, assim como uma cadeira ou uma estante, mas não para ser o ponto principal da atenção. Era música para tapar o silêncio inconveniente das falas, abrandar o tilintar dos talheres e abafar os ruídos que vinham da rua. Satie, um excêntrico que guardava milhares de cartas nunca abertas, que usava em qualquer ocasião um mesmo modelo de casaca listrada e que dava nomes estranhíssimos às suas obras – como Três Passagens em Forma de Pêra - inventou a música ambiente quando os ambientes não estavam preparados para sua música.  Cage e Satie fizeram peças para não se ouvir. O primeiro, com 4’33 queria que se “ouvisse” o silêncio que o som do silêncio musical produzia; o segundo queria que a música suplantasse o silêncio que se abate sobre as conversas e sobe os ruídos do mundo. Num tempo em que vivemos mergulhados e bombardeados por sons de toda ordem, seja no trânsito, nos fones de ouvido, na gritaria das ruas, nas mensagens e posts das redes sociais, é interessante pensar sobre o silêncio, principalmente o silêncio dentro de nós. Estamos ficando surdos de nós mesmos. Quem para alguns minutos que seja, quando chega em casa e senta quieto a ouvir nada? Ou a se ouvir, num mergulho em si?  Cada vez mais distantes da natureza, caminhamos e corremos nos parques e na praia, com fones que nos roubam o canto dos pássaros, o ruído do mar, ou mesmo nossa respiração e passsadas. Cage provocou o silêncio que perturbou as pessoas e Satie queria preencher o silêncio das falas fáticas e vazias, na maioria. Numa certa medida são contraditórios, mas ambos nos fazem refletir sobre nossa relação com o silêncio e nosso afastamento da natureza, e, consequentemente, de nós mesmos.



sábado, 3 de setembro de 2016

A MULHER AMADA NUA (revisado)



Quem troca de corpos com frequência, só tem troca de corpos. Não que isso seja ruim, mas é incomparável à troca de corpos com almas. Aliás não é troca, é toque. Dormir com a mulher amada, fazer amor com a mulher amada e acordar ao lado da mulher amada é tocar sua alma, mesmo que quando vc depois a olha, nua, atirada entre os travesseiros, não sabe por onde ela anda.




Olhar a mulher amada dormindo, nua, mergulhada nos travesseiros é um momento/sentimento único. Olhar aquele corpo, ali estirado, mergulhado no seu mundo, provoca uma multidão de pensamentos. 
Aquele corpo é o corpo da alma que eu amo, e onde andará ela nesse instante? Sonha com o quê? Por onde vagará?, nadando em mares verdes, andando por matagais perigosos, pratos saborosos, outros braços? Ah, se desse para entrar nos seus sonhos agora e descobrir isso que nem ela desvenda, sua alma misteriosa...
Aquele corpo é o corpo que eu amo. Que em noites de tempestade, sacode a terra com seus frêmitos, gemidos e gozos. Que em noites de calmaria, se aconchega ao meu corpo e deixa seu perfume invadir meus pulmões, seu calor aquecer meus pelos, e sua respiração ao meu ouvido exaltar o estar vivo ao lado dela, duas vidas unidas em corpo e alma.
Quando olho sua pele morena, onde  veias parecem rios que correm cheios de seiva para o seu coração que pulsa ao som do mistério da vida e do nosso encontro tão desencontrado, tudo tão lindo, tão louco, tão calmo, tão tudo...
Quando vejo seus cabelos ‘assanhados’ (Deus do céu!) pelo sono e pelos meus dedos, que não se cansam de correr entre eles, harpa silenciosa, percebo o quanto é belo vê-la tão ‘desproduzida’, tão minha, tão nós.
Isso é olhar para a mulher amada dormindo. E ao acordá-la, cara inchada de noite, hálito pesado de noite, dizer "bom dia, acorda pra ser amada". Muito diferente de olhar aquela estranha que passou a noite com você e que ao acordar, assim meio sem jeito e sem assunto, os dois forçam uma intimidade baseada na noite que tiveram, mas que por mais prazerosa que tenha sido, foi isso apenas, a noite prazerosa que tiveram. E pode nunca mais se repetir.
Não há comparação ao se acordar ao lado da mulher amada, e contemplá-la com sua beleza, até com o que para ela é não beleza, uma estria aqui uma celulite aIi, uma gordurinha que se já


insinua... porque a mulher amada está acima disso, até porque aqueles ‘defeitinhos’ são a história do seu corpo, as marcas do seu tempo. São ‘indefeitos’.
Quem troca de corpos com frequência, só tem troca de corpos. Não que isso seja ruim, mas é incomparável à troca de corpos com almas. Aliás não é troca, é toque. Dormir com a mulher amada, fazer amor com a mulher amada e acordar ao lado da mulher amada é tocar sua alma, mesmo que quando vc depois a olha, nua, atirada entre os travesseiros, não sabe por onde ela anda. Mas vc sabe que está na alma dela, de alguma forma, e sabe que no corpo dela estão as marcas do seu, e vice versa. E o vice versa é isso, é amor, é corpo e alma.

domingo, 28 de agosto de 2016

MINHAS CANÇÕES


A partir de agora, meu blog passa a ter um pouco mais da minha “vidalma”, com as músicas que amo, que fizeram parte dessa minha trajetória atrapalhada pelo planeta. E para começar não podia ser outro, o maior gênio dos últimos 500 anos desse país. Wesley Safadão que me desculpe, mas falo de Chico. Só isso já basta. Chico.
Aqui, “Se eu soubesse”, o lado feminino da alma iluminada desse cara iluminado. Corações ao alto.




sábado, 27 de agosto de 2016

NÃO DEIXE PARA AMANHÃ O AMOR DE HOJE. AMOR É PRATO QUE SE COME QUENTE E COM PIMENTA


Cena do filme "As pontes de Madison"
"Da série dos outros, q amo"



 SÍLVIA MARQUES, in Obvious



Muitas vezes, esperando o momento ideal para viver o amor, deixamos o melhor da vida ir embora sem ao menos nos despedirmos com alguma pompa e circunstância. Inventamos milhares de desculpas para não nos envolvermos completamente, para não mergulharmos de cabeça em relações que poderiam se tornar o nosso amor com A maiúsculo.


É uma pena perceber que existem mais casais formados pela conveniência social, pelo "amor" de costume do que pelo amor mesmo. É triste perceber que a maioria das pessoas passa pela vida sem conhecer e sem saborear o amor com A maiúsculo. Ás vezes, não acontece mesmo. Vai se fazer o que? Toca-se a vida e pronto.
O triste mesmo é quando a pessoa deixa o amor passar por medo ou por incapacidade de se adequar a uma situação não tão fácil. O triste é quando a gente deixa este amor especial passar por birra , por preguiça , por descrença na vida , por descrença em nós mesmos , no outro , no amor em si.
Muitas vezes, esperando o momento ideal para viver o amor, deixamos o melhor da vida ir embora sem ao menos nos despedirmos com alguma pompa e circunstância. Inventamos milhares de desculpas para não nos envolvermos completamente , para não mergulharmos de cabeça em relações que poderiam se tornar o nosso amor com A maiúsculo.
Obviamente , é muito simples entender por que as pessoas temem o amor. O amor pode ser muito doloroso. Muito doloroso mesmo. Talvez a rejeição amorosa seja uma das piores dores que existem. E mesmo quando um amor é feliz , relacionar-se exige uma boa dose de desprendimento, o que não está muito em moda ultimamente. Cada vez mais encontramos menos pessoas dispostas a compartilhar e a vivenciar experiências a dois.
Ás vezes, por questões contingenciais, somos obrigados a esperar pelo amor. Sim, somos obrigados a esperar quando quem amamos está com medo. Quando quem amamos precisa pular algum obstáculo interno para chegar até nós.

Mas se tivermos a possibilidade de alcançarmos o amor , não há nada melhor do que saboreá-lo em fartas garfadas , bem quente , pelando, com molho de pimenta por cima. Sim, amor é prato que se come quente. Deixar o amor no forninho é um baita desperdício, é vida jogada fora. Cada semana , cada dia , cada momento que nos privamos da presença da pessoa amada é uma semana , um dia , um momento perdidos.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

SEPARAÇÃO E O VIRA-LATAS



Da outra separação
Era tanta coisa que doía
Que até das coisas falta eu sentia
A gente aguenta
Mas que saudades eu tinha
Até das ferramentas
Parceiras de final de semana
Dessa vez agora
Era tudo que doía
A gente aguenta
Mas que saudade que eu senti
Até de minha coleção de pimentas
Deixadas morrer sequinhas
E até, como é que pode?
Senti falta do mais feio vira-latas,
Que me fazia festa com sua cauda fedorenta
A gente aguenta
Mas a saudade mais cruel
É da pessoa que eu era naquelas histórias
Feliz, romântico, confiante no juntos pra sempre
Mais um eu morto vivendo na minha memória
Mas já vejo um contraponto
Um cemitério ao contrário, mistura de Incidente em Antares
Com Pasárgada
de bons momentos dentro mim
que mais parece um jardim
onde rego minhas plantas e pimentas
do jeito que nunca fiz
e elas florescem lindas, coloridas
e com Mercedes dou ‘gracias a la vida
por me ha dado tanto’.
Às avessas, gauche, feliz.


quinta-feira, 18 de agosto de 2016

A VIDA SERIA MAIS SIMPLES SE AS PESSOAS NÃO VOMITASSEM FELICIDADE FALSA


Da série "Dos outros, que amo".
   
Patrícia Marques

A vida seria mais simples se as pessoas fossem mais elas mesmas. Se elas olhassem nos olhos dos outros e falassem sobre seus problemas, seus medos. A vida seria mais simples se a gente não precisasse provar que é bem-sucedido o tempo todo. Seria mais simples se a gente pudesse gostar das pessoas independentemente da vida que elas levam. Se a gente pudesse dizer sem constrangimento algum que está se sentindo um monte de merda e que a vida pode ser bem complicada sim. Talvez, se admitíssemos mais o caos que é viver, não sofreríamos tanto. Talvez, se desfocássemos mais daquilo que dizem que é importante , mas que não faz sentido para nós, fôssemos mais bem sucedidos num sentido mais amplo. 



Sim, a vida seria bem mais simples e espontânea se as pessoas não vomitassem felicidade falsa nem tentassem o tempo todo provar um equilíbrio que elas não têm. Ninguém acorda super bem todos os dias. Ninguém se sente disposto para uma cerveja depois do expediente todos os dias. Ás vezes a gente fica mal mesmo, lembra de um monte de fatos trash e quer chorar na cama que é lugar quente. Ás vezes as coisas não parecem fazer muito sentido e a gente quer ficar fechadinho dentro da gente mesmo.
A gente não é obrigado a ficar feliz e comemorar porque é Natal, réveillon ou dia dos namorados. A gente não precisa necessariamente sorrir e querer curtir porque faz sol, porque a gente está na praia ou porque disseram que a vida é simples e é o ser humano que complica.
A gente não precisa rejeitar a tristeza como se fosse uma doença pestilenta. Ela faz parte da vida como a alegria. Só precisamos tomar cuidado para não transformá-la em um hábito ou nos esconder atrás dela por medo de ser feliz ou ainda dar importância demais a problemas e principalmente à pessoas pequenas. Este é um exercício e tanto que pode levar anos ou a vida inteira. Mas me parece que vale a pena.
A vida seria mais simples se as pessoas fossem mais elas mesmas. Se elas olhassem nos olhos dos outros e falassem sobre seus problemas, seus medos. A vida seria mais simples se a gente não precisasse provar que é bem-sucedido o tempo todo. Seria mais simples se a gente pudesse gostar das pessoas independentemente da vida que elas levam. Se a gente pudesse dizer sem constrangimento algum que está se sentindo um monte de merda e que a vida pode ser bem complicada sim. Talvez, se admitíssemos mais o caos que é viver, não sofreríamos tanto. Talvez, se desfocássemos mais daquilo que dizem que é importante , mas que não faz sentido para nós, fôssemos mais bem sucedidos num sentido mais amplo.
Talvez se mostrássemos mais os nossos rostos demaquilados e nossas almas nuas, se não nos defendêssemos tanto uns dos outros, se não nos importássemos tanto em mostrar que somos melhores do que os outros, pudéssemos ser mais unidos, mais solidários, mais amados, mais amantes.
Se a gente entendesse que todo mundo está no mesmo barco...Rogo pelo dia em que as mulheres casadas se assumam sozinhas e mal amadas. Rogo pelo dia em que as mulheres solteiras confessem que uma companhia faz falta sim e que fazer tudo sozinha pode ser muito triste. Rogo pelo dia em que os homens tanto casados como solteiros afirmem com todas as letras que morrem de medo das mulheres e que nunca deixam de ser meninões. Rogo pelo dia em que as mães gritem desesperadas o quanto estão cansadas e as que não têm filhos lamentem esta lacuna em suas vidas. Que os crentes reclamem dos grilhões da fé e que os ateus lamentem não crer. Que todos se assumam meio perdidos, meio sozinhos nesta vida louca. Rogo para que as pessoas assumam como o passado é doloroso e o futuro incerto. E depois de tantas confissões acaloradas, que elas possam respirar fundo, sorrir umas para as outra e seguir em frente cheias de coragem. Que depois de tudo, a gente pudesse cantar juntos I will survive e nos sentir intimamente ligados ao outro por meio da nossa vulnerabilidade, por meio da nossa capacidade irrestrita e desgovernada de dar e receber amor.


terça-feira, 16 de agosto de 2016

O NÃO-VIVIDO DE NOSSAS VIDAS


"E as histórias q começaram e acabaram no não-vivido mais? Das amizades ao amor. Aquela amizade que parecia ser pra sempre, de tanta afinidade e cumplicidade, e a gente foi deixando esfriar, até ir parar no limbo, jogado num cantinho dos contatos das redes sociais? Eventualmente vira uma ‘curtida’, e só...
E aquela relação tão forte, aquele amor, aquela admiração, atração intensa pelo outro, parceria, a divisão das dificuldades e a multiplicação das conquistas e alegrias, que por detalhe, acabou?..."


Artur da Távola deixou textos memoráveis sobre o amor, e num deles ele fala justamente do não-vivido. Aquele cara bacana q sentou do seu lado no metrô, q rolou um papo super bom, de muita afinidade em tão curto tempo, que lhe deu cartão, q pegou seu telefone... e nunca mais se falaram. Porque você não quis ligar primeiro, porque ele também não quis, ou porque tinha alguém, porque você perdeu o cartão dele, ou...ou...
Quantas histórias não foram vividas, ou, melhor, foram não-vividas por detalhes? Ou se você preferir, por coisa do acaso, do destino. Você já pensou quantas coisas, estou falando aqui de coisas boas, q não lhe aconteceram por um pequeno porém? Gente que você não conheceu, emprego que não aconteceu... porque o e-mail não chegou, o voo foi perdido, não saiu aquela noite porque estava com dor de cabeça, não foi à entrevista de emprego porque...
E as histórias q começaram e acabaram no não-vivido mais? Das amizades ao amor. Aquela amizade que parecia ser pra sempre, de tanta afinidade e cumplicidade, e a gente foi deixando esfriar, até ir parar no limbo, jogado num cantinho dos contatos das redes sociais? Eventualmente vira uma ‘curtida’, e só. Já virou uma amizade não-vivida mais.  A falta de tempo, novos amigos, ou novos conhecidos, a mudança de bairro, uma discussãozinha no bar – e que depois não tiramos a limpo. Limbo.
E aquela relação tão forte, aquele amor, aquela admiração, atração intensa pelo outro, parceria, a divisão das dificuldades e a multiplicação das conquistas e alegrias, que por detalhe, acabou? Detalhe aqui pode ser birra, mágoa, orgulho ferido, palavras pontiagudas, atos frutos da banda podre, que todos carregamos; sentimentos ruins, enfim, o lado lunar que todos temos. Porque diante do amor, tudo fica pequeno. Claro que cada caso é um caso, mas na maioria dos rompimentos, falo quando existe amor, qualquer motivo vira detalhe diante da grandeza do amor latente, e que acaba desrespeitado, logo  ele, tão sagrado e a grande diferença que temos dos macacos, cavalos, cães... Preferimos molhar o travesseiro à pegar o telefone e ligar, procurar, aliás a primeira coisa q a gente faz é bloquear o outro no e-mail, Facebook, whatsApp... só não bloqueia no coração, porque no coração não tem o botãozinho do excluir, do bloquear. E aí pra sempre restará o não-vivido mais ....
 Aquela criatura que era o seu sonho de ter filhos, viajar o mundo, construir uma vida juntos, morrer velhinhos, vira uma outra pessoa, quando não, o diabo. E o amor mais não-vivido, passa a ser vivido do rancor, do desamor.
A ideia q me assalta é q vivemos muito mais o não-vivido e o mais não-vivido. Seja por acaso, pelo cartão perdido, pelo telefonema não dado, pelo orgulho, pelo número bloqueado, pelo tempo, que mais que a distância, afasta as pessoas. Por detalhe, pela ausência do ‘desculpe a nossa falha’, as amizades se perdem, e os amores se morrem. No não-vivido e no mais não-vivido pra sempre. E assim vivemos. Ou não.


quinta-feira, 11 de agosto de 2016

OS ‘UNIVERSOTÁRIOS’ DA FACULDADE E DA MÚSICA


"... até a música que são obrigados a consumir, já que não lhes é dada outra alternativa e também porque não foram ensinados a buscar, até a música, repito, é chamada de ‘sertanejo universitário’. Ora, essa música pobre, todas iguais saídas da mesma forma, de letras que incentivam a bebedeira e a putaria, ou choram o chifre e o desamor, numa pobreza poética, essa sim, de fazer chorar, não é sertaneja e muito menos deveria se chamar de ‘universitária’, uma ofensa a quem busca crescer, mesmo que seja nesse engodo que hoje é o ensino superior. Esperteza do mercado: se é universitário, é melhor. "


As universidades, cada vez mais, refletem essa verdade crua do mundo-mercado e cada vez mais, como disse Ciro Marcondes Filho, tendem para o ensino técnico-prático, formando “cada vez mais competências para repassar saberes específicos e formados à la carte, tornando os professores meros instrutores da operacionalidade técnica”. Nossas faculdades são cada vez mais profissionalizantes. Jornalismo, Administração de Empresas, Direito, cada vez mais são cursos técnicos, como Contábeis, Sistemas de Informação, Engenharia… Cursos superiores? Acho um deboche à cultura que a humanidade começou a construir desde 450 a. C. com os gregos, chamar esses cursos todos e todos os outros não citados, de superiores. Superiores a quê? em quê? Ensinam, no máximo, um fazer, uma técnica. Nunca um pensar o fazer. O ex-presidente da Academia Brasileira de Ciências Contábeis e também da Academia Nacional de Economia, Antônio Lopes de Sá, perguntado sobre o principal problema dos cursos de Ciências Contábeis, disse: “falta filosofia, psicologia, tem contabilidade demais e cultura de menos”. Lopes de Sá, era doutor em Contábeis e doutor em Letras pela London University. Falta pensamento nos nossos cursos, isso que nos faz diferentes das outras espécies, ou pelo menos vinha fazendo nesses últimos séculos. Falta também emoção, falta afetividade nas nossas salas de aula. É claro que isso não falta só nas faculdades, falta em todas as salas de aula, com exceção das do prezinho. Aliás, já chamamos afetuosamente prezinho, porque ele vem antes da sala de aula propriamente dita, aterradora, castradora. Como lembrou Rubem Alves, estranho que nessa fase do prezinho, as crianças queiram ir para a aula e depois isso se transforma numa coisa enfadonha, triste mesmo. O sociólogo Francisco de Oliveira, tempera esse papo dizendo que “quando uma criança tem medo e não consegue dormir no escuro, nós devemos ir lá e acender a luz”. Nas nossas salas de aula de hoje o ar condicionado está ligado, mas as luzes estão apagadas e nós, professores, não sabemos onde está o interruptor, porque nunca nos disseram e tampouco fomos ensinados a procurar. Podemos até ter a técnica de uma boa aula, dominarmos toda a tecnologia embutida/empurrada goela abaixo de professores e alunos, mas não nos falaram sobre emoção, fraternidade. E sem isso não existe talento, não existe criatividade. Sem amor ninguém desperta. Ninguém desperta sem ser também cutucado, provocado nos porquês. Na porrada, na cobrança, na competição, no máximo, se assusta. Basta ver a cara de espanto dos jovens que são empurrados a fazer uma faculdade para, na melhor das hipóteses, ter algum chance de futuro, incerto e inseguro. São empurrados para um tal de empreendedorismo sonhando com concurso público, a única tábua para se agarrar nesse mar de desamor, competição e insegurança. A universidade está subserviente demais. “Diz-me, ó mercado, que tipo de formando quereis e eu te darei”. E ele - o novo Deus - responde: “Quero gente fria, que saiba fazer e não pense muito, quero gente-máquina, gente técnica que baixe a cabeça e produza e não ouse olhar diferente, fazer perguntas, quero gente que só pense em comprar uma calça nova, um carro novo, tomar a vodka da moda...”. E o pior - ou melhor de tudo, dependendo do lado que se olha a coisa – é ver que os universitários querem é esse ensino mesmo, embotados que já foram. Talvez seja melhor chamá-los não de “universitários”, mas como Sérgio Augusto em artigo na Bravo, de “universotários”. Porque até a música que são obrigados a consumir, já que não lhes é dada outra alternativa e também porque não foram ensinados a buscar, até a música, repito, é chamada de ‘sertanejo universitário’. Ora, essa música pobre, todas iguais saídas da mesma forma, de letras que incentivam a bebedeira e a putaria, ou choram o chifre e o desamor, numa pobreza poética, essa sim, de fazer chorar, não é sertaneja e muito menos deveria se chamar de ‘universitária’, uma ofensa a quem busca crescer, mesmo que seja nesse engodo que hoje é o ensino superior. Esperteza do mercado: se é universitário, é melhor. Chega a doer essa maldade.

A universidade cada vez forma mais gente só para produzir e consumir, enfim, viver como máquina. E produzir se conseguir emprego. E consumir se tiver renda. Sonhar, ousar, mudar, isso nunca. Aliás, sonho nesse mundo, só os que a mídia cria, de preferência de consumo. A técnica venceu. O talento e a criatividade perderam, eles só tem valor se for para o bem do mercado. A inteligência e a sensibilidade também. O homem perdeu. Não há iso, reengenharia, essa nova bobagem chamada coaching, ou coisa que o valha, capaz de criar a emoção de ouvir uma peça de Satie, ler um poema de Whitman (porque nunca foram apresentados a eles) ou mesmo a gratidão alegre por uma mão pousada no ombro em meio ao turbilhão desumano que o ser humano criou no trabalho, nas salas de aula, nos shoppings…coisas de outro mundo, não desse mundo técnico-tecnológico, frio-interesseiro, que coloca ferro nos dentes pro sorriso ficar bonito, mas não ensina nem diz do que rir, se não for produzido pelo Grande Irmão de Orwell, que a Globo debochou criando o ‘Big Brother’.
 E o homem pensa que está ganhando o jogo. Ele está qualquer coisa, menos iso.



terça-feira, 9 de agosto de 2016

A ARTE DE (DES)CRUZAR AS PERNAS


(revisado)

Porque a mulher conjuga, como o homem não sabe conjugar, o verbo esperar. Ela espera no bar, na festa, que o homem, normalmente já escolhido, venha conversar. Ela espera o sangue vir, depois espera ele ir. Se o sangue não vem, ela espera bebê. Nove meses de espera. Coisa que homem nenhum suportaria. Ela embala  o bebê e espera ele dormir. Ela espera o homem vir.

A mulher tem várias armas para derrubar, ou pelo menos bambolear um homem, no jogo da sedução. Uma das mais eficazes é o cruzar de pernas. Com saia ou vestido, claro. Aliás, essa é uma distinção - saia e vestido – que está além da minha compreensão. Tudo pra mim é saia ou tudo é vestido. Uma mulher que, diante de espécime macho, saiba cruzar as pernas e, o que é mais perturbador, saiba descruzá-las, soma pontos valiosos na planilha da sedução. A imortalidade de Sharon Stone está garantida não pela sua obra, mas pelos cinco segundos de seu cruzar e, principalmente, descruzar de pernas.
Antes de tudo, mais importante que tudo, acima de tudo, quase tudo: é preciso calma nessa hora, digo, nessa arte. É preciso ser mesmo lenta, câmara lenta – slow motion, para quem está mais acostumado ao português moderno. Aliás, a calma, um jeito devagar de fazer tudo, irmã gêmea da delicadeza, deveria ser a norma de todas as condutas da mulher. Na verdade, creio que as mulheres são mais lentas por natureza, e, por favor, eu estou elogiando. As ligeirinhas, agitadas, que me perdoem, mas não são o melhor do gênero. Foram corrompidas. Esses tempos de velocidade, de potência, de gente máquina, esse cruzamento doido de alma com tecnologia, que acelera tudo, isso é coisa de macho, mas acabou atingindo a mulher. Mas no fundo, na essência, ela tem a calma. Porque a mulher conjuga, como o homem não sabe conjugar, o verbo esperar. Ela espera no bar, na festa, que o homem, normalmente já escolhido, venha conversar. Ela espera o sangue vir, depois espera ele ir. Se o sangue não vem, ela espera bebê. Nove meses de espera. Coisa que homem nenhum suportaria. Ela embala  o bebê e espera ele dormir. Ela espera o homem vir. Rubem Braga escreveu aos 20 e poucos anos uma bela crônica sobre a mulher que espera homem. “Não importa que seja a esposa vulgar de um homem vulgar; e que no fim a história do atraso dele seja também vulgar, neste momento ela é a mulher esperando o homem”.
E quando um pneu do carro fura, a mulher simplesmente desce e ... espera alguém – homem, claro – para trocá-lo. No sexo, ela demora mais, e o homem, sem paciência, não espera como ela certamente esperaria. Depois, ela espera um papo carinhoso e ele não espera pra dormir. Até na hora da concepção se faz a diferença – 350 milhões de espermatozóides em louca carreira para chegar ao óvulo, que lentamente foi dos ovários para a trompa e lá, placidamente, espera o vencedor da corrida. O que não é diferente aqui de fora, onde o homem corre, corre, atrás de quem mesmo? Porra-louca dentro e fora.
Então, mulher, busque a calma se ela anda agitada dentro de você, que ela lhe pertence. A menos que você tenha 18 anos, ou por aí, porque aí é quase impossível. Vale para todas o que Afonso Romano escreveu sobre a mulher madura:

"Há uma serenidade em seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosas. A adolescente não sabe ainda os limites do seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muitos barulhos, joga muita água para os lados. Enfim, desborda. A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo de repouso da garça sobre o lago."

Particularmente sempre disse  que mulher começa a virar gente depois dos 25. Homem, muitas vezes, nunca vira, vivendo sempre o roteiro que lhe escreveram. A mulher espera se reiventar. Para encerrar esse papo vejamos a localização do sexo no homem e na mulher. O homem, arma em riste; a mulher, algo escondido - um lugar quente, úmido, pra dentro, estranho, muito diferente do sexo dele, pra fora, solto no mundo (agite antes de usar). Mulher é interior e tudo que isso implica - emoção, sexto sentido, mistério, conotação; homem é exterior, e tudo que isso explica, denotação.
Dito isso, minha amiga, calma sempre e em tudo, que esse bicho apressado chamado homem corre tanto justamente pra chegar aí – um regaço morno, um cafuné de mãos delicadas, a paz depois da correria, sono abraçado numa nuvem: ela ressonando no seu ombro. Então, mãos à obra. Aliás, pernas. Mas bem devagarzinho.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

CORRER COM DEUS OU CORRER COM OS HOMENS

Quando passava um cruzamento olhava para as pessoas nos carros, presas no ar condicionado e no vidro escuro (a cara de nossas vidas longe da vida), e ao mesmo tempo que sentia pena delas, me sentia constrangido. O que pensavam de mim, ali solitário, derretendo, ao invés de estar junto deles, "correndo" pro trabalho, pra aula, enfim, pra algo “produtivo”?

Agora que minha vida enfim, começa a voltar ao normal, depois de 7 meses no limbo, pós cirurgia e outras feridas, e retorno a correr, quero correr também pelos pensamentos com você. Quero falar das diferenças de onde se corre. E do prazer que é correr. E chegar mais uma vez a Deus.
Comecei correndo pela Oliveira Paiva, uma grande avenida aqui de Fortaleza. Depois experimentei a Washington Soares, artéria maior ainda, mas que tem pista central para quem corre, caminha ou anda de bicicleta. Por fim voltei a correr na praia. E aí seguem minhas filosofadas semióticas.
Correr na Oliveira Paiva, uma avenida semelhante a tantas do Brasil a fora, é correr na cidade com o que ela tem de mais cidade, isto é, calçadas irregulares, buracos, sinaleiras, cruzamentos, carros e carros enfileirados, uns entrando nos postos pra abastecer, outros saindo; bêbados e pedintes; vendedores de comida de rua, tapioqueiras... enfim, é a cidade como ela é. A avenida tem vida, tem alma. Mas tem a marca desse tempo: a pobreza da rua, o luxo e a solidão dos carros, com gente apressada, atrasada, preocupada, estressada. Sem falar no ar que se respira. Precisa tanta atenção, e tem tanta distração que desisti.
Mudei. Fui pro corredor da  Washington Soares. Correndo cedo, passava por um aqui outro ali, gente com fones nos ouvidos e ladeado por filas intermináveis de carros, mais uma vez com gente apressada, atrasada, preocupada, estressada, querendo chegar a algum lugar. Mas aquela pista me pareceu tão fria, me fez sentir tão só. Quando passava um cruzamento olhava para as pessoas nos carros, presas no ar condicionado e no vidro escuro (a cara de nossas vidas longe da vida), e ao mesmo tempo que sentia pena delas, me sentia constrangido. O que pensavam de mim, ali solitário, derretendo, ao invés de estar junto deles, "correndo" pro trabalho, pra aula, enfim, pra algo “produtivo”?
Não senti a alma da cidade, que ficava nas calçadas. Me incomodou. Sem falar no ar, de novo. Ali também não era lugar.
Por fim, voltei à correr na praia. Uau! Ufa! Aff! Que diferença!
Pés descalços na areia, mar rugindo do lado, sol e brisa fazendo dueto no meu corpo. Algumas pessoas também corriam, e, surpresa!, sorriam,  davam “bom dia”.  Casais caminhavam de mãos, bandos de cachorros se exercitavam atrás de peixes jogados fora, milhares de conchinhas saudavam meus passos ...
Ali estava Deus. Ele também estava nas avenidas. Muitos deviam estar nos seus carros, ouvindo hinos, pastores, padre Marcelo, Reginaldo Manzotti. Deus era o bêbado caído, aquele homem com uma placa “tô com fome”. Cristo é o outro. Mas a diferença é que naquela confusão toda, a gente nem nota isso. É tanta atenção-distração que a gente nem nota a si mesmo.
Correndo sozinho na praia, sentia Cristo correndo do meu lado. “Bora, cara!”. Olhava o horizonte azul e lá estava Ele. Extenuado, tomei um banho, me atirei na areia olhando o céu. E lá estava Ele. Sei que Ele está em todo lugar, mas na maioria dos lugares que construímos (ou destruímos) é mais difícil encontrá-Lo. Por isso voltei ao mar. Ou o mar voltou pra mim. Se você corre na cidade, e pode dar um jeito de correr na praia, faça-o. Mesmo que você só busque saúde, vai ser muito melhor. Mesmo que você não creia ou não busque Deus, Ele está lá te esperando. Na paz, na brisa, no rugir das ondas, no infinito do horizonte e do olhar pra cima. E principalmente do olhar pra dentro. Vai ser muito melhor.