terça-feira, 28 de abril de 2009

A arte de cruzar as pernas (ou ainda, a arte da espera)

A mulher tem várias armas para derrubar, ou pelo menos bambolear um homem, no jogo da sedução. Uma das mais eficazes é o cruzar de pernas. Com saia ou vestido, claro, nem se fala. Aliás, essa é uma distinção - saia e vestido – que está além da minha compreensão. Tudo pra mim é saia ou tudo é vestido. Uma mulher que, diante de espécime macho, saiba cruzar as pernas e, o que é mais perturbador, saiba descruzá-las, soma pontos valiosos na planilha da sedução. A imortalidade de Sharon Stone está garantida não pela sua obra, mas pelos cinco segundos de seu cruzar e, principalmente, descruzar de pernas.
Antes de tudo, mais importante que tudo, acima de tudo, quase tudo: é preciso calma nessa hora, digo, nessa arte. É preciso ser mesmo lenta, câmara lenta – slow motion, para quem está mais acostumado ao português moderno. Aliás, a calma, um jeito devagar de fazer tudo, irmã gêmea da delicadeza, deveria ser a norma de todas as condutas da mulher. Na verdade, creio que as mulheres são mais lentas por natureza, e, por favor, eu estou elogiando. As ligeirinhas, agitadas, que me perdoem, mas não são o melhor do gênero. Foram corrompidas. Esses tempos de velocidade, de potência, de gente máquina, esse cruzamento doido de alma com tecnologia, que acelera tudo, isso é coisa de macho, mas acabou atingindo a mulher. Mas no fundo, na essência, ela tem a calma. Porque a mulher conjuga, como o homem não sabe conjugar, o verbo esperar. Ela espera no bar, na festa, que o homem, normalmente já escolhido, venha conversar. Ela espera o sangue vir, depois espera ele ir. Se o sangue não vem, ela espera bebê. Nove meses de espera. Coisa que homem nenhum suportaria. Ela espera o homem vir. Rubem Braga escreveu aos 20 e poucos anos uma bela crônica sobre a mulher que espera homem. “Não importa que seja a esposa vulgar de um homem vulgar; e que no fim a história do atraso dele seja também vulgar, neste momento ela é a mulher esperando o homem”.
E quando um pneu do carro fura, a mulher simplesmente desce e ... espera alguém – homem, claro – para trocá-lo. No sexo, ela demora mais, e o homem, sem paciência, não espera como ela certamente esperaria. Depois, ela espera um papo carinhoso e ele não espera pra dormir. Até na hora da concepção se faz a diferença – 350 milhões de espermatozóides em louca carreira para chegar ao óvulo, que lentamente foi dos ovários para a trompa e lá, placidamente, espera o vencedor da corrida. O que não é diferente aqui de fora, onde o homem corre, corre, atrás de quem mesmo? Porra-louca dentro e fora.
Então, mulher, busque a calma se ela anda agitada dentro de você, que ela lhe pertence. A menos que você tenha 18 anos, ou por aí, porque aí é quase impossível. Vale para todas o que Afonso Romano escreveu sobre a mulher madura:

"Há uma serenidade em seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosas. A adolescente não sabe ainda os limites do seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muitos barulhos, joga muita água para os lados. Enfim, desborda. A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo de repouso da garça sobre o lago."

Vinicius, em Receita de Mulher já tinha dado o veredito: “É preciso que súbito tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada” . É isso. A mulher ao mover-se, e aqui, no caso, ao sentar-se, precisa parecer uma garça pousando. Leve, suave, esbelta, senão esguia. É que no cruzar e descruzar de pernas, a mulher se abre e se fecha. Porque quando uma mulher faz sexo, ela se abre em oferenda, ela se dá. E até nessa hora, sem pressa, ao contrário do desesperado macho. Veja a localização do sexo no homem e na mulher. O homem, arma em riste; a mulher, algo escondido - um lugar quente, úmido, pra dentro, estranho, muito diferente do sexo dele, pra fora, solto no mundo (agite antes de usar). Mulher é interior e tudo que isso implica - emoção, sexto sentido, mistério; homem é exterior, e tudo que isso explica.
Dito isso, minha amiga, calma sempre e em tudo, que esse bicho apressado chamado homem corre tanto justamente pra chegar aí – um regaço morno, um cafuné de mãos delicadas, a paz depois da correria, o sono abraçado numa nuvem. Então, mãos à obra. Aliás, pernas. Mas bem devagarzinho.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Com Chet, sofrer é quase um prazer

A madrugada avança, a noite vai se indo. E aí? Não mudou nada. “Inútil dormir que a dor não passa”. Tampouco ficar acordado. Talvez esse seja o momento mais comum aos mortais que gostam de escrever e passam momentos de solidão, dor, tristeza, desespero – desafiar palavras, desafogar palavras, desenterrar palavras que traduzam o interior e enfrentem o exterior. Sinto-me humanamente igual a todos e tantos quantos já enfrentaram essa “insônia do tamanho do mundo”, empunhando palavras ou não. É verdade que nem todos nem tantos partem para essa batalha ouvindo algo como Chet Baker tocando e cantando I fall in love too easily, como faço agora. O que é bom, porque muitos talvez não suportassem. O que também é mau, porque muitos talvez suportassem e partissem para ouvir Chet estraçalhar Misty ou ainda Everything happens to me, na versão mais longa com o quarteto de Charlie Haden. E se chegassem a esse momento atingiriam o nirvana da angústia, quase o prazer do sofrer. E paralelo à grande dor sentiriam, quem sabe, como eu agora, uma profunda piedade dos que dividem essas horas com todo o lixo que se produziu e se produz para cantar e chorar o amor/desamor, a solidão, a tristeza – coisas como Bruno e Marroni, ou mesmo Renato Russo, poetinha menor que escreveu versinhos bobinhos para adolescentes em crise eterna com os pais e o mundo, mesmo passando dos 40. Ah!, licença então: que coisa boa sofrer ouvindo Chet. Sade? Sabe, dá até um orgulho, uma coisa boa mesmo, assim do tipo puxa, pelo menos a indústria cultural e sua cocacolização do mundo, com sua produção em série de mais do mesmo sempre, ainda não me capturou de todo. Daí eu estaria aqui ouvindo um popizinho gravado pelo Latino ou uma versão pseudamente cult de Ivete Sangalo ou Daniela Mercuri, ou... sei lá, são todas iguais - parece que desceram do mesmo caminhão de som ou saíram do mesmo programa dominical. O que quero dizer é que a dor não pode ser a mesma. Quem chora ouvindo “tô fazendo amor com outra pessoa/ mas meu coração vai ser pra sempre teu”, não pode sofrer igual a quem chora escutando “não, solidão, hoje não quero me retocar/nesse salão de tristeza onde as outras penteiam mágoas/deixo que as águas invadam meu rosto/gosto de me ver chorar/finjo que estão me vendo/eu preciso me mostrar”, do Chico. Quem sofre ouvindo "eu sou dela ela é minha/ e sempre queremos mais/ se me manda ir embora/ eu saio pra fora/ ela chama pra trás", não pode sentir igual ao ouvir "vem me fazer feliz/ porque eu te amo/ você deságua em mim/ e eu oceano/ e esqueço que amar/é quase uma dor", do Djavan.
Sentimento e gosto se educam e nossa juventude, de todas as idades, foi tão educada dentro do igual e do medíocre - que melhor seria dizer tão deseducada -, tão sem ídolos que valham a pena, tão sem referências para tudo que não seja descartável, fútil, que dói vê-los sarados, fashion, bêbados, cantando "um minuto é muito pouco pra poder falar/ a distância entre nós não pode separar" e... se achando. Ei cara!, até pra sofrer existe beleza, até no sofrer existe estética, e a história da arte, desde os gregos, mostra isso.
Estou naqueles momentos em que como disse Drummond, não há nada no mundo que justifique o ponto de exclamação.
Estou mais para Pessoa:

Não há na travessa achada o número da porta que me deram.
Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...



A beleza toca a dor, que toca Chet, que toca e me toca. Percebo agora que algo mudou, sim. Talvez esse seja o momento que vivo mais incomum aos mortais que gostam de escrever e passam momentos insones de solidão, tristeza, desespero. Sofro quase com gozo. Me vem Leminski: “Um homem com uma dor é muito mais elegante”. Sei que não sou melhor do que ninguém, mas nesse momento, com essa música e com essa dor que carrego, me sinto. Desculpe, amanhã eu volto a me achar o último da fila. Hoje, Chet me deu dignidade e superioridade na dor. Coisa de beleza. Me deu a diferença nesse mundo de iguais. Coisa de sentimento. A melhor arte me deu uma melhor dor. Coisa de Chet.

Um pouco de Chet

Se você conhece e gosta de Chet Baker, isso é bom pra sua alma. Se você ama Chet, como eu, encare o cara - a música dele - como um presente divino. Se não conhece, nunca é tarde pra se redimir e acalmar os deuses. No Google existem mais de 2 milhões de sites sobre Chet baker. Apresento aqui alguns onde você encontra um pouco da vida maluca, desregrada e desgraçada desse cara que aos 25 anos causava desmaios nas mocinhas, pela sua beleza; e aos 50, com cara de 100, causava espanto, pela feiura. Álcool, drogas, brigas de perder os dentes, prisões, Chet Baker teve uma vida tão tumultuada que parece incrível que tenha mantido sua arte num nível exepcional de leveza e beleza. Como uma alma tão amargurada podia produzir uma música tão suave, tão calma, tão sublime? Onde um camarada tão transtornado que chegou ao ponto de voar por uma janela e se desmanchar numa calçada encontrava paz pra fazer a música que fazia?
Bem, se quiser mais de Chet clique aqui ou aqui. Para ouvir I fall in love too easily, vá ao Youtube abaixo.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Chuva: diário de um molhado

Chove. E a vida fica perfeita quando me sobe um cheiro de café forte do apartamento daquela mulher que mora sozinha com seu cachorro. Fico imaginando ela tomando seu café, contemplando a chuva pela janela enquanto seu cachorro fica sentado olhando a cena e de repente espirra. A chuva tem poder! Não falo das catástrofes, tampouco dos resfriados. Falo desse sentimento que ela nos cria. Essa umidadezinha que parece que borrifa nossa alma e lhe tira um pouco da secura que a vida, dura e sem sentido que levamos, instala nela. Esse cheiro de terra, que nos remete, inconscientemente, atavicamente, a um passado muito distante de quando ainda corríamos pelos campos e pradarias atrás de alces e gazelas e vivíamos com os pés fincados nela e dormíamos sentindo seu coração. Esse cheiro de água, que não tem cheiro, dizem, mas que a gente sabe que tem - cheiro de lembrança. É um cheiro que traz à memória momentos bonitos, amargos, alegres, tristes... momentos. Pense e você vai encontrar momentos inesquecíveis marcados pela chuva! A água repentina que caiu quando você chegava em alto estilo numa cerimônia de luxo. A tarde em que chovia muito e você amou inesquecivelmente aquela pessoa que fez folia em seu corpo, cujos exércitos invadiram o seu país e correu da sua vida sem dizer com pernas você devia seguir. A batida no trânsito, por culpa do asfalto molhado. O dia aquele em que sua adolescência ganhou o primeiro "eu te amo" escrito num vidro embaçado. Escolha um momento de tantos e cante à chuva, que ela merece todo o canto e louvor.
Eu me lembro aqui de dois momentos. Um, eu tinha sete anos e ia pra escola. Naquele tempo a gente usava capa-de-chuva, galocha e, ainda, guarda-chuva. A gente se preparava pra enfrentar a chuva. Mas nessa manhã eu não tinha saído nem de capa, nem de galocha, nem de guarda-chuva, porque minha mãe achou que não fosse chover. Às vezes ela errava, como errou prevendo que eu seria um grande homem, muito rico e importante. Naquele dia, quando me deparei com a chuva, a saída foi saltitar entre uma marquise e outra. Mas quando cheguei na quadra da escola, surpresa: não tinha mais marquise na rua. E cheguei todo molhado. E pior: molhei o caderno de caligrafia que eu amava. Chorei e pra sempre me lembrarei da chuva batendo no meu rosto, se misturando com as lágrimas, uma cena que se repetiu muitas vezes depois... chuva e lágrimas. A gente passa a vida pulando de uma marquise pra outra, sai pra chuva sem capa nem nada e não quer se molhar. Mas não adianta. A gente acaba perdendo o emprego de que gostava tanto ou precisava muito. A gente tenta não sofrer, tenta até não amar. Mas não adianta, um dia o coração acelera, a alma dilacera. Um dia fica só, sentado na calçada do mundo. Um dia, enfim, não tem marquise e a gente se molha e molha o caderno de caligrafia. A outra lembrança é de uma madrugada em que eu e Manon, uma moça tão linda como é raro seu nome, esperávamos táxi na esquina da minha casa. Eram 4h. De repente, chuva. Eu, elegantemente, tirei minha jaqueta jeans e armei uma proteção para nós. Ficamos bem juntinhos. Eu sentia o perfume do seu corpo, seu cabelo me reçova, seu hálito de vinho misturado com chiclete acariciava minha emoção. Naquela noite tínhamos saído pra jantar. Bebemos, fomos pro meu aparamento, bebemos, conversamos muito, rimos muito. E foi só. E estranhamente foi uma noite inesquecível, porque não acontecendo nada, aconteceu tudo. Das outras que aconteceu tudo, não lembro nada. Nunca mais vi Manon, mas ela viverá pra sempre em mim. Porque não acontecendo nada, aconteceu tudo. E porque chovia.

terça-feira, 7 de abril de 2009

O motel, o doce da mãe e dia de hoje

Hoje é o dia de uma pessoa muito especial para você, mas talvez você nunca tenha parado para pensar nisso. O simples fato de você estar me lendo já mostra quanto essa pessoa é importante para você. Se ela não existisse, nós não estaríamos, eu e você, nessa convivência tão íntima - estamos só nós dois aqui metidos nessas linhas, não? -, e tão anônima ao mesmo tempo - não sei em que lugar estamos nos encontrando: na sua casa, no trabalho, num bar; pior, no banheiro? E não sabemos nada um do outro: peso, cor, idade, renda; pior, muito menos sabemos se vamos nos encontrar de novo. Essa pessoa tão especial está presente em todos os dias da sua vida. Às vezes lhe conta coisas ruins, coisas que você preferia não ouvir da boca de ninguém; outras lhe dá alegria como só ela sabe, contando coisas bonitas, maravilhosas, que você nem esperava ouvir de alguém. Por vezes essa pessoa é fofoqueira, metida na vida dos outros e até na sua; outras, é maldosa e mesmo que ela não reconheça isso, faz e diz coisas que envergonham as outras como ela. Mas eu não tenho a menor dúvida de que você não tem dúvida nenhuma sobre preferir a vida e o mundo com essa pessoa. Aliás, você não saberia viver sem ela. Estou falando de quem? Tchan, tchan, tchan, tchan, tchan: do jornalista !
Eu não tenho dúvidas também de que ele é Deus e diabo, às vezes ao mesmo tempo. Mas pense comigo. Vamos pegar só um exemplo: o caso Nardoni. Tudo bem, que a cobertura não precisava ser de 48 horas por dia, mas imagine o contrário: não ver nem saber nada disso. Imagine sua vida sem o Fantástico nos domingos mornos em que não aconteceu nada na sua vida, nem mesmo aquela sobremesa idolatrada na casa da mãe. O Fantástico garante a emoção do final de semana. E mais, garante suas conversas na segunda-feira, na fila do banco, no trabalho, ou até mesmo com aquelas certas pessoas das suas relações, sonolentas de dormir demais e ver e viver de menos. Imaginemos a seguinte situação: a tv mostrou à noite uma reportagem interessantíssima que você não viu porque estava no motel vivendo emoções como aquelas que o Roberto cantou, ou porque estava assistindo um filme muito muito bom ao lado de alguém melhor do que o filme; ou ainda porque estava se deliciando com aquela sobremesa tão famosa e já falada na casa da mãe. Pois bem, a primeira pessoa que lhe perguntar: “você viu a reportagem aquela no Fantástico?” Você diz: “não”. Simplesmente. Quando a segunda pessoa perguntar, você já vai falar um pouco mais: “ Pois é, sabe, eu estava fora...” E já vai ficar meio que se explicando. Quando a terceira pessoa vier lhe perguntar se você não viu a tal reportagem, você já vai estar se odiando por ter ido ao motel, ou à locadora ou à casa de mamãe. Por quê? Porque a mídia é sua referência, lhe dá não só assunto, mas identidade, lhe faz existir no mundo, que é no fundo, o mundo criado muito muito por ela. Claro que isso é tema para discussão e produção intelectual sem fim. Existe até um livro chamado Ansiedade de informação, de Richard Wurman, tratando de como sofremos porque não vimos, ou não lemos o que os outros leram, e também porque não conseguimos ver, ler, tudo que o mundo – aquele mesmo criado pela mídia – diz que devemos ver, ler. Mas aqui quero só marcar esse dia que é o Dia do Jornalista, uma pessoa muito importante na sua vida. Só agora confesso que sou um deles. E, ao mesmo tempo, que homenageio, agradeço: obrigado pela parte que me toca. E a parte que me toca é você, leitor, leitora, razão de existir do jornalista. Logo, você também é uma pessoa muito importante para essa pessoa, o jornalista. Deixando então todas as discussões e produções intelectuais/literárias para depois, saúdo a nós dois, eu e você, por construirmos uma coisa tão mágica e bonita e humana – a comunicação. Porque se hoje é, “calendariamente” falando, o Dia do Jornalista, verdadeiramente, hoje é o Dia da Comunicação.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A solidão das estrelas

Tarde da noite. Mais de 1h30min. Vou caminhando pela rua, sem pressa, no rumo de casa. Ouço apenas ruídos distantes – um carro que arranca com força, talvez um namorado tentando mostrar que ele tem a força daquela máquina; um cachorro latindo, talvez por absoluta falta de sono, quem sabe irritado com aquele tolo namorado. E ouço meu próprio caminhar, que no silêncio fica forte, decidido, como não sou. Distraído, penso em quase nada. Sigo em paz com o sono e os sonhos das casas e apartamentos. E assim penso que a noite dorme em paz.
De repente um baque forte me faz sair daquele estado em que a escuridão e o silêncio se apoderavam de mim. Em seguida gritos, vozes alteradas, gente se ofendendo. Vêm da janela de uma casa pobre, de tábuas secas, descoloridas pelo tempo e carcomidas pelas goteiras de tantas chuvas. Apresso o passo. Chego mais perto. É a velha quitandeira, que mora na casa, que grita agora. É ela, sempre tão doce, tão risonha, discutindo com seu filho, que, dizem, anda envolvido com drogas.
Meus pensamentos voam. Penso em quantos mundos trágicos, infelizes, se escondem atrás dessas janelas cerradas da noite e desses sorrisos abertos do dia. Com as estrelas, penso, somos trazidos à realidade de nossas dores, nossa solidões, nossas dificuldades diante disso que se chama viver – essa coisa fácil como respirar e difícil como aceitar a morte. Com a escuridão e as estrelas somos trazidos à realidade de nossa pobre condição de seres humanos confusos e perdidos num planeta perdido numa galáxia - perdida em meio a milhões de outras galáxias – que tem mais de cem milhões de estrelas perdidas. Que tristeza penso, ao mesmo tempo tão pequena, tão solitária - desesperadoramente solitária – e infinita dessas janelas que sofrem e não dormem. E que no outro dia se abrem doces e risonhas. Por fora. Mas continuam tristes e baldias. Por dentro. Apresso o passo, quero chegar logo em casa. Preciso dormir. Quando abro o portão, olho para as janelas da minha casa. Já sei que não vou dormir.