terça-feira, 19 de maio de 2009

Teoria e prática: O jornalismo e a mesmice da vida (final)

Fui percebendo, aos poucos então, que a minha atividade profissional como jornalista era a realidade de todos os profissionais, não só jornalistas – uma vivência de práticas, de técnicas, de fórmulas, clichês, standards e slogans que envelheciam ad infinitum sem desaparecer nunca. Entendi que, no caso da comunicação feita através da indústria cultural, como disse Bruno Pucci

[...] as conseqüências inevitáveis do uso abusivo dos clichês desembocam no “esvaziamento da atividade de comunicação”, no “empobrecimento da imaginação do indivíduo”, na justaposição de um discurso demasiadamente colado aos fatos ou por demais abstrato. Podemos dizer que os clichês se transformam no avesso dos exercícios estéticos propostos por Baumgarten, ainda no século XVIII, para desenvolverem nas pessoas “a aptidão para pensar de modo belo e de modo lógico ao mesmo tempo”. Através deles, se pode exercitar e harmonizar os sentidos e as “faculdades inferiores”, em proveito da elegância do conhecimento. E experimentar o mais plenamente possível a fantasia, a perspicácia, o dom poético, o gosto fino e apurado, a disposição de pressentir (arte divinatória) e a capacidade de expressar com elegância suas percepções.Na era esplendorosa dos meios de comunicação, tudo é facilitado, tudo se torna tão próximo, tudo já vem pronto e direcionado [...].

A palavra é, assim, “cunhada pelo comércio”, isto é, é transformada em instrumento para a compreensão rápida, digestão imediata, pseudamente isenta, falsamente acrítica. Fui aos poucos entendendo que a vida vivida nesse mundo instrumentalizado é toda ela – não só a do jornalismo - voltada para essa praticidade, essa visão de resultados, um outro nome para a cegueira. Pucci vai falar no texto já citado em “orientação funcionalista e fragmentária”, “visão dicotômica e fragmentária”, referindo-se aos cursos pré-vestibulares e aos cursos de graduação, lugares onde “a exclusão da reflexão e do estético [...] transferem para a pós-graduação [...] candidatos com dificuldades extremas para pesquisar, elaborar reflexões, redigir um texto”. Era sobre ensino formal que ele escrevia, mas vale também para o “grande” ensino, a grande escola do mundo, além dos muros das escolas institucionalizadas, que mais formata do que forma tudo e todos. Tal qual o Operário em Construção, de Vinicius de Moraes, que de operário construído se fez operário em construção, eu percebi o quanto fragmentariamente eu ensinava e vivia, e o quanto à vida toda e tudo é isso. E me mudei de mim mesmo. Hoje não rejeito as fórmulas, os rótulos, mas questiono-os. E na medida do impossível busco o diferente, a variante, o outro jeito. Minhas aulas de redação jornalística ainda ensinam o texto formatado, condição de mercado, mas com postura crítica, de que se escreve assim porque se escreve pra ninguém, ou para todos, que é a mesma coisa. E trabalho sempre o texto livre, leve e solto, condição básica de vôo e sobrevivência para cada um que quer flanar pelo universo da palavra, do jornalismo, e da vida, enfim. Como pessoa cada vez mais reverencio os Satie, os Modigliani, os McCullers, gente diferente, que fez a diferença.
Quero destacar, também, que nessa caminhada com Adorno percebi ainda que como professor eu fui ensinado que ensinar, ser didático, era explicar coisas aparentemente complicadas, ou complicadas mesmo, mas sem apresentar essas coisas aos alunos. Por exemplo: eles não liam Adorno, mas liam textos mais acessíveis que descomplicavam Adorno, que, como disse Valls, escrevendo difícil fazia o “seu jogo de esconde-esconde e de meias palavras [...] por simpatia, por respeito à inteligência do leitor”. O pensar com mais profundidade era (e é)) desestimulado. Mas se “conhecia” Adorno. Mais ou menos como se “conhece” a Sinfonia nº 40 de Mozart através do trecho mais popular dela, de preferência usando como referência o enunciado: “aquela da propaganda do sabonete”. Essa superficialidade, estendida a todas as formas do viver, um viver danificado – o viver do clichê, da padronização, dos jogos de aparências em que estamos metidos, do fácil e do fútil - isso foi do que acabei me dando conta, em reconstrução, a partir das idéias de Adorno e Horkheimer. Eu já quase virava dinossauro, não tanto pela idade, mais pela dureza/rudeza que o mundo objetivo e seco me impingira no corpo e na alma. Mas como bem frisou Che Guevara, de que devemos endurecer, “pero sin perder la ternura jamás”, sobrou um pouco de mim, e desse pouco refiz-me, no que ainda deu tempo e no que havia ainda de tinta para escrever a minha própria narrativa de ser. Essa reconstrução, lembro Barthes, deu-se com “nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível". Tenho saboreado muito, desde então.

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