quinta-feira, 25 de março de 2010

Desconfio que meu amor tá me traindo

“Nossos caminhos foram traçados na maternidade”. O verso de Cazuza se encaixa no meu caso de amor com ela. O filme “Nunca te vi, sempre te amei”, também. Senão, como explicar essa vontade de conhecê-la, de estar com ela desde sempre? Sempre sonhei com esse contato. Acho que Freud não explica. Talvez o espiritismo e a teoria de vidas passadas esclareçam, se é que isso existe. Passaram-se anos até que nos encontramos. Nossa relação no começo foi de algum estranhamento, mesclado com muita emoção, pelo menos da minha parte. Algumas coisas nela me chocavam, outras me encantavam. Eram mais coisas boas e positivas. E assim o amor surgiu, pelo menos da minha parte. Hoje eu a amo e a conheço bem. E ainda descubro novidades todos os dias, aumentando meu encantamento. Devo confessar, todavia, que me sinto um tanto abandonado por ela, ultimamente. Poderia até dizer que me sinto algo desprezado por ela.
Falo de uma mulher chamada Fortaleza, a cidade onde sempre quis morar e moro há alguns anos. A cidade onde, sem nem conhecer, já queria morar. Sem nem conhecer, já sentia que ia amar. Conheci, amei, mas agora ando meio de lado com ela. É que antes, quando eu andava de carro pelas suas ruas, eu deslizava encantado vendo os outros reclamarem do trânsito. Eu pensava: nossa! Isso aqui é uma delícia, eles não sabem o que é engarrafamento. Hoje, carrego um livro de crônicas de Rubem Braga – 200 crônicas escolhidas – para ler quando tudo pára. E como pára, hoje. A rua pára e eu mergulho nas palavras mágicas de Braga, que abrandam meu stress e meu desencanto cada vez maior. Já li 150 crônicas, em poucos dias. Mas queria mesmo era a mágica da cidade andar e poder chegar em casa, no trabalho, sem ter que fazer o comentário-explicação da hora: puxa, fiquei preso horas no trânsito.
Então vamos pra uma DR, meu amor. Diz o que está acontecendo contigo. Porque fazes isso com teus filhos naturais e adotivos, como eu? Não te ensinaram sobre estratégias, logísticas, engenharias? O que há com tuas artérias? Deixaram-nas inchar como varizes e agora o teu sangue – essas pessoas que te amam e que te dão vida – não tem passagem. Sei que não tens culpa direta, porque como uma filha mal educada que não sabe receber e se comportar, tu também não foste ensinada a dar passagem, e não adianta nem mais pedir licença. Me diz onde estão teus viadutos, teus túneis, teu metrô que se perdeu nos trilhos do tempo? Onde estão os responsáveis pela tua formação, que não te proveram do básico para que crescesses com algum preparo, alguma estrutura e assim pudesses enfrentar esses tempos de carros-abelhas e conviver amorosamente com essa multidão que anda, compra, vende, trabalha, se diverte e... sofre nas tuas ruas e avenidas?
Outra coisa: nunca bati em mulher, mas também nunca apanhei, e agora tu me bates todo dia. Nossa relação está começando a me tirar do sério. Teus homens dirigem tensos por ruas perigosas, não pelos buracos, mas por que escondem gente que apedreja, que assalta, que mata. Gente tua que odeia tua gente. Gente que faz mal. Tuas mulheres começam a ficar almodovarescamente à beira de um ataque de nervos, porque seus filhos pequenos voltam sem celular pra casa; e seus filhos maiores, bem, esses quando retornam nas noites em que saem pra se divertir, promovem suspiros tão fundos e aliviados, que ecoam pela tua madrugada. E o Ronda, que te protege? Será que vou ter que batizá-lo de Ronca, porque sempre dorme no ponto, chega atrasado e só pega mesmo é a bóia de cortesia no restaurante da esquina? Eita!
Assim, nosso amor fica comprometido. Nossa relação começa a ser unilateral. Poxa, só eu dou, só eu cedo?! E agora, o que é esse ar que me sufoca? Sei que isso não é culpa tua, mas como um casal em crise, onde a simples pasta de dente sem tampa já promove uma discussão, começo a colocar isso também na cesta das nossas desavenças. O que é esse calor de Palmas, Teresina, Cuiabá, em pleno inverno? E a chuva, meu amor? E a chuva que me deixava dormir o sono dos fortalezenses felizes, puxando um edredom e ouvindo aquele som de água, aquele cheiro de terra molhada? Cadê? Não me fale desses pinguinhos caraminguás... sei não, mas começo a pensar que até nisso tens culpa.
Começo a sentir cheiro de traição. E daí a me traíres de verdade ou não, não muda nada. Porque numa relação verdadeira, não precisa haver traição carnal. Existe uma que dói tanto quanto, ou mais – é a traição do compromisso. E dessa pra outra traição é rapidinho. É isso! Você está rompendo o nosso compromisso. Não quero me separar de ti, mas também não quero aquela relação que se leva com a barriga. Pense nisso, tome tenência. Não jogue tudo fora. Quero andar de mãos dadas contigo, de novo. Faça sua parte. Tô no meio da rua, no sol, te esperando. Ainda te amo muito. Um beijo, Fortaleza.

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