Cage e Satie fizeram peças para não se ouvir. O primeiro, com
4’33 queria que se “ouvisse” o silêncio que o som do silêncio musical produzia;
o segundo queria que a música suplantasse o silêncio que se abate sobre as
conversas e sobe os ruídos do mundo. Num tempo em que vivemos mergulhados e
bombardeados por sons de toda ordem, seja no trânsito, nos fones de ouvido, na
gritaria das ruas, nas mensagens e posts das redes sociais, é interessante
pensar sobre o silêncio, principalmente o silêncio dentro de nós. Estamos
ficando surdos de nós mesmos.
Imaginemos essa cena.
Numa sala de concerto o pianista senta-se ao piano, levanta a tampa do teclado,
acomoda-se, ajeita sua casaca, exercita os dedos dedilhando o ar, folheia a
partitura, repousa as mãos sobre o teclado sem emitir som e, por exatos 4
minutos e 33 segundos não toca absolutamente nada. A obra 4’33, de John Cage,
compositor norte-americano revolucionário de meados do século XX, é assim
mesmo: para se ouvir o silêncio. Por alguns minutos o púbico permanece quieto,
esperando... Logo a plateia se
impacienta e ouvem-se murmúrios e burburinhos. Que palhaçada é aquela? Alguns se perguntam, perguntando para quem
está do seu lado. Já não há mais silêncio. Cage leva ao extremo, com 4’33, o
debate sobre o tempo na música e, por extensão sobre a própria liberdade de
criar, que tanta polêmica gerou a partir de textos críticos de Adorno sobre a
obra de Stravinsky, que o frankfurtiano criticara.
No início do século, um
outro músico, o francês Erik Satie, de quem Cage é tributário, pensa a música
como um objeto, um móvel para o espaço onde as pessoas conversam, almoçam. Ele
chama de Musique d'Ameublemen, música-mobília. Certa vez, no intervalo de uma peça de
Max Jacob ele resolve apresentar sua obra “mobília”. Distribui pelos cantos da
sala um piano, três clarinetes e um trombone, que tocam fragmentos musicais
desconexos. O público, cercado por estes sons desconcertantes, passa a ouvir em
silêncio educado. Exatamente o contrário do que Satie queria. Não se contendo,
ele determina: "Falem! Mexam-se! Façam qualquer coisa, mas não
escutem!". Era uma música para preencher o ambiente, assim como uma
cadeira ou uma estante, mas não para ser o ponto principal da atenção. Era
música para tapar o silêncio inconveniente das falas, abrandar o tilintar dos
talheres e abafar os ruídos que vinham da rua. Satie, um excêntrico que
guardava milhares de cartas nunca abertas, que usava em qualquer ocasião um
mesmo modelo de casaca listrada e que dava nomes estranhíssimos às suas obras –
como Três Passagens em Forma de Pêra
- inventou a música ambiente quando os ambientes não estavam preparados para
sua música. Cage e Satie fizeram peças
para não se ouvir. O primeiro, com 4’33 queria que se “ouvisse” o silêncio que
o som do silêncio musical produzia; o segundo queria que a música suplantasse o
silêncio que se abate sobre as conversas e sobe os ruídos do mundo. Num tempo
em que vivemos mergulhados e bombardeados por sons de toda ordem, seja no
trânsito, nos fones de ouvido, na gritaria das ruas, nas mensagens e posts das
redes sociais, é interessante pensar sobre o silêncio, principalmente o
silêncio dentro de nós. Estamos ficando surdos de nós mesmos. Quem para alguns
minutos que seja, quando chega em casa e senta quieto a ouvir nada? Ou a se
ouvir, num mergulho em si? Cada vez mais
distantes da natureza, caminhamos e corremos nos parques e na praia, com fones
que nos roubam o canto dos pássaros, o ruído do mar, ou mesmo nossa respiração e passsadas.
Cage provocou o silêncio que perturbou as pessoas e Satie queria preencher o
silêncio das falas fáticas e vazias, na maioria. Numa certa medida são
contraditórios, mas ambos nos fazem refletir sobre nossa relação com o silêncio
e nosso afastamento da natureza, e, consequentemente, de nós mesmos.
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