quinta-feira, 3 de novembro de 2016

CORREMOS TANTO PRA FICAR PARADOS


(Excerto do meu mestrado como uma contribuição para a reflexão sobre a velocidade de nossas vidas “paradas”)





   Vivemos hoje o tempo da velocidade absoluta. A velocidade com que fazemos transferências bancárias, é a mesma que nos coloca on-line com o mundo pelo telefone celular, ou pela Internet, é a velocidade com que trocamos as cartas pelos e-mails, ou descartamos amigos e amores, ou trocamos de lugares (não-lugares) e empregos (desempregos). A tecnologia, notadamente a da indústria cultural, e nessa com destaque para o emaranhado de redes infoeletrônicas, satélites e fibras óticas, nos coloca diante de um mundo impensado.

Coexistimos sob o signo da ultra velocidade [...]. Diante de nossas retinas, sucede-se um turbilhão de imagens, sons e dados que ora nos convence de que somos privilegiados pela abundância, ora nos atordoa com a impressão de que jamais conseguiremos reter uma ínfima parte dessa aluvião informacional. Porque tudo é perturbadoramente veloz e imediato. O tempo real se dilui e se restaura sem direito a intervalos. As informações, mal chegaram, já estão de partida [...]. Os controles remotos, por sua vez, são acionados freneticamente. Em Mídias sem limite [...], Todd Gitlin [Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 102] cita pesquisa segundo a qual os controles são acionados até 107 vezes por hora pelos três quartos dos norte-americanos com menos de 30 anos que assistem diariamente aos noticiários televisivos.[1]
Kundera no romance A lentidão (1995, p. 5-6) nos faz desacelerar e pensar quando narra um motociclista ultrapassando o personagem que viaja devagar, de carro:
[...] o homem curvado em sua motocicleta só pode se concentrar naquele exato momento de seu vôo; agarra-se a um fragmento retirado tanto do passado quanto do futuro; é arrancado da continuidade do tempo; está fora do tempo; em outras palavras está num estado de êxtase [...]. A velocidade é a forma de êxtase que a revolução técnica deu de presente ao homem. Ao contrário do motociclista, quem corre a pé está sempre presente em seu corpo, forçado sempre a pensar em suas bolhas, em seu fôlego; quando corre, sente seu peso, sua idade, consciente mais do que nunca de si mesmo e do tempo de sua vida. Tudo muda quando o homem delega a uma máquina a faculdade de ser veloz: a partir de então, seu próprio corpo fica fora do jogo e ele se entrega a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si, velocidade êxtase.
Mais adiante, Kundera (1995, p. 6) pergunta:
Por que o prazer da lentidão desapareceu? Ah, para onde foram aqueles que antigamente gostavam de flanar? Onde estão eles, aqueles heróis preguiçosos das canções populares, aqueles vagabundos que vagavam de moinho em moinho e dormiam sob as estrelas?

Por sua vez, Virílio (apud Sant’Anna, 2001, 16) “não cessa de lembrar o quanto ‘a corrida é eliminatória’, polui distâncias, anula intervalos, suscita muito mais o uso de reflexos do que da reflexão”. E Barthes (1985, 62) vai ser categórico: “a 2.000 por hora, em atitude constante, nenhuma sensação de velocidade”, ou seja, em velocidade tamanha, a impressão é de que se está parado. Estranha matemática essa que o homem matematizado pela razão vive hoje: é preciso ter pressa, correr, a tecnologia exige velocidade, no teclado, no acelerador, na academia, mas tanto mais corre mais se tem a sensação de que se está atrasado, perdendo o pique, perdendo a história, perdendo o emprego, o casamento, perdendo a vida. Como lembra Tucherman (1999, 15) “é que parecemos estar atrasados não em relação ao nosso futuro, mas em relação ao nosso próprio presente”. Estranha lógica que coloca todos na mesma estrada, com os mesmos objetivos, com os mesmos pensamentos sem saber porque os pensa, uma uniformização “que faz parte do próprio processo da indústria cultural, imposto a uma sociedade que, apesar de toda a racionalização, permanece irracional” (Hermann, 2005 [no prelo]
O mundo globalizado, a cultura mundializada, o mundo todo envolto num só manto de pensamento único, a eletrônica, a informática tudo isso faz com que a vida seja acelerada... para o vazio. O homem da cidade anda mais rápido do que o homem do campo, se alimenta mais rápido, em tudo ganhou velocidade – até mesmo no sexo conceituou a “rapidinha”, o ato sexual veloz, por vezes feroz, e sem comprometimento – mas estranhamente, parece estar com o freio de mão puxado. Corre e parece não avançar. Corre para chegar no semáforo, corre para chegar na fila, corre para ficar parado. E talvez apenas nesses momentos o homem se dê conta do quanto sua vida se vai e se esvai, o que foi muito bem captado por Paulinho da Viola, na sua canção Sinal fechado, onde dois motoristas (homens instrumentalizados) conversam, rapidamente, à espera do sinal abrir:
Olá, como vai?
Eu vou indo e você, tudo bem?
Tudo bem, eu vou indo, correndo
Pegar meu lugar no futuro e você?
Tudo bem, eu vou indo em busca
De um sono tranqüilo, quem sabe?
Quanto tempo?
Pois é, quanto tempo?
Me perdoe a pressa
É a alma dos nossos negócios
Qual, não tem de quê
Eu também só ando a cem
Quando é que você telefona
Precisamos nos ver por aí
Pra semana prometo, talvez
Nos vejamos, quem sabe?
Quanto tempo?
Pois é, quanto tempo?
Tanta coisa que eu tinha a dizer
Mas eu sumi na poeira das ruas

Eu também tenho algo a dizer
Mas me foge a lembrança
Por favor, telefone, eu preciso
Beber alguma coisa rapidamente
Pra semana
O sinal





[1] Do texto de Denis Moraes A vida na era da saturação midiática, publicado na   revista virtual Ciberlegenda, número 12, 2003, da Universidade Federal Fluminense e disponível no site: http://www.uff.br/mestcii/denis10 .htm (27/07/2004).

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