Lá
fora os cheiros de lixo, de mijo, de
podre,
de um mundo doente, pobre, feio, sujo, de gente que nunca toma banho,
de gente pra quem a arte está em chegar ao dia seguinte. Lá
dentro a música levava ao sonho, à fantasia, ao enlevo que só a
arte é capaz. Fora, o sonho estava no sono mal dormido, perturbado
por aquele ‘barulho,’ e aquecia pratos de comida e preparava
camas macias.
Teatro
José de Alencar, sábado. Lá dentro a música, pra mim a mais bela
manifestação do gênio humano, explodia em vozes, instrumentos e
boniteza. Teatro José de Alencar, sábado. Lá fora, o lixo, o lixo
material e o lixo humano davam outro espetáculo, muito mais
espetacular. Dentro, vozes afinadas dedilhavam almas sensíveis.
Quase se ouvia o suspiro das pessoas que assistiam. Fora, roncos
desencontrados de quem dorme torto num banco de pedra feito pra
sentar, como as confortáveis poltronas lá de dentro. Lá dentro,
uma mistura de perfumes dava ao ar um cheiro de leveza, de limpeza,
um cheiro de mulher saindo do banho, de mulher saindo. Os cheiros se
misturavam com aquele leve burburinho que ouvimos, e
que vem da alma, quando
a vida, com surpresa e encanto, nos depara com algo agradável, bom.
Lá fora os cheiros de lixo, de mijo, de
podre,
de um mundo doente, pobre, feio, sujo, de gente que nunca toma banho,
de gente pra quem a arte está em chegar ao dia seguinte. Lá dentro
a música levava ao sonho, à fantasia, ao enlevo que só a arte é
capaz. Fora, o sonho estava no sono mal dormido, perturbado por
aquele ‘barulho,’ e aquecia pratos de comida e preparava camas
macias.
A
música que vazava para a rua era basicamente popular. Seria ideal,
nesse cenário, que se tocasse a Nona de Bethoveen, pra mim a maior
criação de um ser humano, se é que Bethoveen foi realmente um ser
humano. Ou ainda Trois
Gymnopédies,
de Satie, pra mim o mais maluco, irreverente e sensível compositor.
Seria
perfeito: o máximo da beleza e o máximo da feiúra.
Duvido
que mesmo na Índia se veja um cenário desses. Antes, as pessoas
saindo de seus carros também lavados e brilhantes para o show - como
os corpos e pescoços das mulheres -, desviam dos que dormem no chão,
das latas, dos papéis que rolam... O luxo desvia do lixo. Mas o
perfume não supera o mau cheiro.
Saio
no meio do show tocado pela emoção e fico caminhando pelos jardins.
Atendo o chamado do Carlton vermelho e opto por mais uns momentos
daquele outro espetáculo, na verdade um show assustador da injustiça
e da indiferença humanas. Penso no Teatro
José de Alencar,
ícone da cultura, da arte e do status cearense mergulhado na triste
verdade desse país. Escuto um mendigo deitado rosnar para si mesmo:
‘que horas vai terminar essa zoiera?”
La
dentro alguém canta “We are the champions”. Aqui
fora se poderia fazer o coro: “e nós somos os perdedores”.
Lá
dentro as cortinas se fecham. Aplausos para o melhor do ser humano.
Aqui fora, céu aberto, o espetáculo continua, hoje e todas as
noites, com o pior que conseguimos fazer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário