Vossos filhos não são vossos filhos (...)/ Vêm através de vós, mas não
de vós/ Pois suas almas moram na mansão do amanhã/ Que vós não podeis visitar nem
mesmo em sonho(...) (Gibran)
Há um período em que os pais vão ficando
órfãos dos próprios filhos (...) deveríamos
ter ido mais vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir sua alma
respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os
adolescentes cobertores daquele quarto cheio de colagens, posteres e agendas
coloridas(...) (Sant’Anna)


Vendo
minha filha sair pra uma festa, toda produzida, linda, não posso ficar calado.
Mas fiquei. Explico: embora, sem falsa modéstia, sabendo que escrevo bem e o
motivo era mais do que inspirador, fiquei tão, digamos, perturbado, encantado,
assustado com a força e a magia do tempo, que não consegui escrever nada. Só me
vieram à cabeça dois textos que, agora sim, modestamente, eu não faria melhor.
E quero deixá-los aqui para deleite e emoção de todos que tem filhas adolescentes/jovens.
Se você conhece vale ler de novo, se não, prepare o seu coração, principalmente
para o texto do poeta e cronista Affonso Romano de Sant’Anna. Dizer que passa
um filme na cabeça da gente, além de lugar comum, não diz a verdade. Passa uma
série inteira.
Gibran Khalil Gibran, ensaísta, filósofo, prosador, poeta,
conferencista e pintor de origem libanesa e seu poema sobre os filhos...
bem, é ler, refletir. Eles já estão no palco! É hora de sentar na primeira fila
e assistir perturbado, encantado,
assustado.
Antes que elas cresçam
Affonso
Romano de Sant'Anna
Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.
É que as crianças crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas
e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. Crescem como a
inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os estupros dos
preços, os disparos dos discursos e o assalto das estações, elas crescem com
uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância.
Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem, de repente.
Um dia se assentam perto de você no terraço e dizem uma frase de tal maturidade
que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.
Onde e como andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu? Cadê aquele
cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as
festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do
maternal?
Ela está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E
você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas
cresça, mas apareça. Ali estão muitos pais, ao volante, esperando que saiam
esfuziantes sobre patins, cabelos soltos sobre as ancas. Essas são as nossas
filhas, em pleno cio, lindas potrancas.
Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão elas, com o uniforme
de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros ou, então com a suéter
amarrada na cintura. Está quente, a gente diz que vão estragar a suéter, mas
não tem jeito, é o emblema da geração.
Pois ali estamos, depois do primeiro e do segundo casamento, com essa barba de
jovem executivo ou intelectual em ascensão, as mães, às vezes, já com a
primeira plástica e o casamento recomposto. Essas são as filhas que conseguimos
gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias e da
ditadura das horas. E elas crescem meio amestradas, vendo como redigimos nossas
teses e nos doutoramos nos nossos erros.
Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.
Longe já vai o momento em que o primeiro mênstruo foi recebido como um impacto
de rosas vermelhas. Não mais as colheremos nas portas das discotecas e festas,
quando surgiam entre gírias e canções. Passou o tempo do balé, da cultura
francesa e inglesa. Saíram do banco de trás e passaram para o volante de
suas próprias vidas. Só nos resta dizer “bonne route, bonne route”, como
naquela canção francesa narrando a emoção do pai quando a filha oferece o
primeiro jantar no apartamento dela.
Deveríamos ter ido mais vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir
sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os
adolescentes cobertores daquele quarto cheio de colagens, posteres e agendas
coloridas de pilô. Não, não as levamos suficientemente ao maldito “drive-in”,
ao Tablado para ver “Pluft”, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas,
não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas.
Elas cresceram sem que esgotássemos nelas todo o nosso afeto.
No princípio subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos,
comidas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e amiguinhas. Sim, havia as
brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de sorvetes e
sanduíches infantis. Depois chegou a idade em que subir para a casa de
campo com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era
impossível deixar a turma aqui na praia e os primeiros namorados. Esse
exílio dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos bíblicos.
Agora é hora de os pais na montanha terem a solidão que queriam, mas, de
repente, exalarem contagiosa saudade daquelas pestes.
O jeito é esperar. Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do
carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode
morrer conosco. Por isso, os avós são tão desmesurados e distribuem tão
incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso
afeto.
Por isso, é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.
Os Filhos
Gibran Khalil Gibran. Do Livro "O
Profeta"
Uma mulher que
carregava o filho nos braços disse: "Fala-nos dos filhos."
E ele falou:
Vossos filhos não são
vossos
filhos.
São os filhos e as
filhas da ânsia da vida por si
mesma.
Vêm através de vós,
mas não de vós.
E embora vivam
convosco, não vos
pertencem.
Podeis outorgar-lhes
vosso amor, mas não vossos
pensamentos,
Porque eles têm seus
próprios
pensamentos.
Podeis abrigar seus
corpos, mas não suas
almas;
Pois suas almas moram
na mansão do
amanhã,
Que vós não podeis
visitar nem mesmo em
sonho.
Podeis esforçar-vos
por ser como eles, mas não procureis fazê-los como
vós,
Porque a vida não
anda para trás e não se demora com os dias passados.
Vós sois os arcos dos
quais vossos filhos são arremessados como flechas
vivas.
O arqueiro mira o
alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua
força
Para que suas flechas
se projetem, rápidas e para longe.
Que vosso
encurvamento na mão do arqueiro seja vossa
alegria:
Pois assim como ele
ama a flecha que
voa,
Ama também o arco que
permanece estável.