sexta-feira, 4 de março de 2016

OLHANDO A MULHER DO OUTRO


E eu sorvia sua beleza ao tempo em que sorvia minha caipirinha. O marido, confesso, mal eu notara. Sou péssimo pra esses detalhes. Mas vi que existia aquela figura masculina ali, sempre uma mistura de cão labrador com pitibull, dependendo da situação.

Era sábado. Praia do Futuro. Barraca Terra do Sol. Ela estava com seu marido, ou namorado, ou namorido, não sei. Era dia de sol forte, céu azul, daqueles em que até quem não gosta de praia sente vontade de se estirar no sol, tomar um banho de mar. Eu estava sentado a uns seis metros dela, em companhia de mim mesmo. Nessa manhã, me era boa companhia. Achei-a linda linda. E não poupei olhares. Ela também estava sentada, mas não me via. Eu não a olhava como se olha uma presa, eu não a desejava. Simplesmente eu a olhava como se olha uma obra de arte. Eu a contemplava, era isso. Biquini branco, pele dourada, cabelos e pelos dourados, ela era ouro; ela era um espetáculo, e por isso, devia ser olhada com olhos de platéia. E eu estava ali, representando o gênero masculino e tentando bem representar minha espécie, no seu lado, digamos, mais humano, menos bicho. Como ela estava em diagonal, eu podia assistir a sua exposição ao sol e à vida, sem que ela me percebesse. E eu sorvia sua beleza ao tempo em que sorvia minha caipirinha. O marido, confesso, mal eu notara. Sou péssimo pra esses detalhes. Mas vi que existia aquela figura masculina ali, sempre uma mistura de cão labrador com pitibull, dependendo da situação. Sim, porque não tem ser mais cordato e amigável que homem sossegado ao lado da mulher que gosta e de quem sente aquele orgulho que só os machos entendem, aquele orgulho de ter uma mulher bonita e desejada, mas que é dele; e não tem bicho mais pré-histórico, mais primo-irmão do gorila, quando se sente ameaçado por outro macho. Sei, sou um deles. E se a mulher então for flagrada olhando pro outro, coitado, esse vira vítima em potencial de afundamento maxilar, e ela começa a experimentar o que deve ser a sensação de passar o portal do inferno. 
Então eu olhava, mas sereno, porque eles não me viam. Até que, súbito, ela levantou e ficou de frente pra mim verticalizando sua forma esplendorosa. Confesso que levei um choque. Não esperava ela em pé, assim logo logo. Me ajeitei na cadeira e me recompus. Pedi outra caipira. Ela começou a fazer uma das coisas que eu mais curto na mulher – arrumar o cabelo, fazendo um simples rabo-de-cavalo. Simples? Naquele simples gesto, se encerra uma das maiores forças sedutoras do ser feminino. Nada de simples. Jogar o cabelo pra lá e pra cá, enquanto passa a liga, trabalhando com as mãos daquele jeito, resume a graça, a garça que vive em cada uma delas. Pensei: aquela cena era tão fortemente graciosa e sedutora que as mulheres deveriam ter a condição de fazê-la em câmara lenta. E aí, tóin, nossos olhares se cruzaram. Olhei firme por segundos e tirei o olhar. A ciência Semiótica diz que quem fala olha menos do que quem ouve. Você pode observar nas suas conversas cotidianas, quando você fala olha menos pra outra pessoa do que ela olha pra você. E ali, naquele dia lindo, na praia, quem estava falando era eu. Eu dizia: nossa, como você é linda! Em seguida ela deitou-se na cadeira, daquelas em que gente fica esticadão, longilíneo. Ela se confundia com o horizonte e me veio um verso de Drummond sobre os profetas do Aleijadinho, em Congonhas do Campo: “eles monumentalizam a paisagem”. Ela, com seu corpo esculpido por Deus num domingo em que Ele não assistiu ao Faustão, também monumentalizava a paisagem. Escultura em carne e osso, a mulher melhor prova de que o Cara existe. 
Quando ela percebeu que eu a olhava, as coisas mudaram. A naturalidade cedeu lugar aquela arte que as mulheres desenvolveram ao longo dos séculos, a arte de usar plenos poderes parecendo que não estão usando poder algum. Ela não se transformou em algo artificial, mas sim numa bela e natural encenação que só as mulheres sabem fazer de não estar nem aí estando aí. Se mexia mais, passava protetor com mais dedicação em cada poro do seu corpo… O homem não me notara. Continuava marido labrador. E assim eu tomava minha terceira caipirinha e a cada gole mais eu a achava linda, a cada gole mais eu sentia que me aproximava da alma dela. E me apaixonava, eu e a Ypioca, dobradinha com o diabo. E o lado bicho começou a me cutucar. Estava ótimo ela deitada, meio de lado pra mim, e eu sorvendo o canudo e absorvendo sua beleza. E o homem não via nada, ocupado em observar um grupo de jovens que continuava saltando. Mas ela me vira. Ela sabia que eu existia. E isso me bastou. Que mais eu poderia querer diante daquele espetáculo vigiado pelo mix labrador-pitibul? Ela me era como um por de sol em Jericoacara – lindo, mas tem seu tempo, acaba. Como disse, eu procurava representar bem o gênero masculino, no seu lado humano, mas já começava a ser vaiado pelo outro lado. Eu, platéia, já tinha me embebedado da sua beleza. E de Ypioca. Ela, palco, já tinha feito sua apresentação pra mim. Tudo sem pecado. Não tinha luxuria aquilo, quer dizer, só um pouquinho já, do meu lado. Aquilo era a vida. Mulher linda, homem-marido do lado, homem sozinho olhando. Mulher maravilhosa é contemplada por homem contemplativo. Tomei o restante do copo num gole só, pedi a conta, dei um suspiro e pensei: que bom, já vou. Ninguém se machucou. Certamente quando ela olhou de novo pra onde eu estava e não me viu, pensou: que bom, já foi. A minha paixão de minutos acabou. A exibição dela também. Mas a vida ficou mais bela. Pra mim e pra ela. E o marido continuou assistindo os saltos dos garotos. Me lembrei de uma crônica de Rubem Braga, onde ele fala da mulher que se prepara para trair. Não era o caso, mas lembrei, acionado pelo copo: “(o marido)...era um boi esquecido, mugindo, numa ilha distante e abandonada para sempre. Mas não senti pena”. Já eu sempre tenho pena dos maridos. Já fui um deles e, quem garante, não serei de novo. Raios caem, sim, mais vezes no mesmo lugar.Mas nada mais aconteceu ali. Ela deve ter ido pra casa com ele, porque era sábado, e sábado, como disse Vinícius “todas as mulheres estão atentas e todos os maridos estão funcionando regularmente”. E eu segui sozinho, com a Ypioca me beliscando com a lembrança dela. Eu já não era o mesmo de quando a descobri ali sentada... Pensei: “normal, esse sou eu”. E não era porque fosse sábado.

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