quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O medo de amar

Quem já passou por essa vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu (...)
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer
Ai de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdão.
Vinicius de Moraes


Domingo, 8h. Depois de uma discussão com o marido, ainda na cama, Joana levantou, tomou uma dose de uísque, puxou uma cadeira para a varanda, subiu e saltou para a morte. Linda, 20 anos, casada havia dois anos, ela não suportou a decisão dele, 28 anos, de se separar. Precipitadamente, as pessoas julgam que Joana se matou por amor. Não foi bem assim. Essa história começou anos antes, quando era criança e seus pais se separaram. Ela, super ligada ao pai, nunca aceitou aquilo, nunca o perdoou por tê-la deixado, e teve uma relação tumultuada com ele, a partir dali. A ruptura dos pais e principalmente a negação do amor do pai, pelo menos na intensidade e presencialidade exigida por Joana, marcaram-na para sempre. Ela se transformou numa border line, seres marcados por rupturas e que pululam aos milhões por aí, com sua instabilidade de humor, tédio, sentimentos autodestrutivos e, claro, dificuldades na realização amorosa. O border line vive situações-limite, não raro à beira do abismo. Joana não viveu o amor de forma plena na infância e bloqueou-se em relação a ele. O amor virou um fantasma no seu inconsciente e ela passou sua breve existência sem se entregar ao amor de ninguém, à confiança de ninguém, exceto daquele que lhe seria um substituto do pai. E este lhe fugiu, como o outro. Rupturas demais. Ela se matou não propriamente por amor, mas por medo do amor, esse sentimento de entrega e integração que lhe era tão difícil.
Saindo da tragédia da vida real e entrando na fantasia da tela, o filme Eu odeio Dia dos Namorados, uma comédia romântica de Nia Vardalos, lançada esse ano, mostra um quadro interessante para esse papo aqui. Genevieve é uma florista que não quer envolvimento. Todos os seus relacionamentos não passam do quinto encontro, para evitar que surja o amor e, daí, sofrimento. Ela jura que assim é feliz. Até, claro, que aparece um bonitão que a faz querer o sexto encontro, o sétimo... E ele para no quinto, conforme o combinado. Só então ela descobre que não queria amar para não sofrer o que sua mãe sofrera com as traições de seu pai. Ela diz para si mesma: “nenhum homem vai me fazer sofrer como mamãe sofreu”.
Voltando à vida vivida, Fernando amou muito Raquel e quebrou a cara. Romântico e apaixonado, era do tipo que ainda manda flores, estende tapetes com toalhas, bermudas e meias, e compra nuvem para passear com seu amor. Pessoas assim, geralmente encontram pessoas não-assim. Resultado: agora ele foge do amor. Só ‘fica’, e jura que é feliz com essa “solidão de mão em mão”, como toca uma música por aí. Se ele continuasse a buscar a mulher para viver um grande amor, talvez no próximo se desse pior ainda. E no terceiro encontrasse alguém que curtisse flores, tapetes e nuvens. Falando em música, Beto Guedes canta faz quase 25 anos que “o medo de amar é o medo de ser livre para o que der e vier”, e o Forró do Muído toca nas rádios daqui dizendo “tá com medo de amar, é? Tá com medo do amor, e aí? Deixa a página virar”.
Enfim, o ponto. Morremos de medo de amar. E os motivos são vários, como vimos. Podem vir isolados, ou misturados. Resumindo, não queremos amar porque já sofremos muito por amor e assim, acovardados, perdemos o melhor da festa, como Fernando. Também não queremos amar, embora na maioria das vezes nem tenhamos consciência disso, porque nossas histórias familiares contam com perdas, rupturas e ‘faltas’ de amor, tal como Joana. Se não tive amor quando criança, como vou lidar com esse sentimento agora que cresci (pelo menos por fora)? Se nunca andei de bicicleta antes, como vou saber andar de bicicleta agora? Logo, passo a não gostar de bicicleta, tiro-a da minha vida. E também não queremos amar porque, esse tempo egoísta, narcisista, individualista que vivemos, nos grita que o grande barato é a emoção, a intensidade das paixonites, a quantidade dos “ficares”, sem alma no meio, assim meio como a Genevieve do filme ali atrás. Amores líquidos, como definiu Bauman no livro com esse nome. E como ele escreveu: “a solidão por trás da porta fechada de um quarto com um telefone celular à mão pode parecer uma condição menos arriscada e mais segura do que compartilhar um terreno doméstico comum”.
O filósofo francês Michel Lacroix, à propósito, num belo livro do ano passado, O culto da emoção, nos alerta que vivemos a era do grito e não do suspiro, da emoção-choque e não da contemplação. Buscamos, desesperadamente, viver emoções, seja nos filmes violentos, nos esportes radicais, nos relacionamentos tão loucos e intensos quanto rápidos.. . que acabamos ficando insensíveis. Mais ou menos como o astronauta que voando a milhares de quilômetros por hora tem a sensação de estar parado. Não amando, seja por qual motivo for, e vivendo uma vida covarde, mutante, cheia de emoções baratas e baldias, cama em cama, bar em bar, corpo em corpo – e pretensamente feliz - parecemos com o camarada que diante de um banquete, se empanturra com as entradas e não chega ao prato principal. No máximo vai beliscar a sobremesa.

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