Imagine a cena. Corpos nus sobre a cama desarrumada, roupas pelo chão. Recém refeitos do delírio erótico, do "prazer cumprido", como escreveu Braga, ela deitada sobre o peito dele diz que quer cantar uma música pra ele, porque adora cantar. Ele consente, claro, imaginando que vai ouvir aquela voz que tanto ama cantar algo agradável, falando de amor. Algo como uma declaração, tipo “eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras não sei dizer...”. Ou "eu sei que vou te amar, por toda a minha vida..." Mas é outra a música. E a voz... o que ele ouve lhe coloca em novo êxtase, dessa vez um êxtase estético-espiritual. Simplesmente ela canta divinamente, como ele não imaginara jamais. E aquela voz que a pouco sussurrava e gemia vibrando fisicamente nos seus ouvidos, agora transcendia e lhe tocava espiritualmente do modo mais belo que a alma de alguém possa ser tocada. “Deus, ela canta demais!”, pensou. E agradeceu tê-la encontrado, uma mulher linda, que ainda por cima – na hora, era mesmo por cima – ainda cantava como quase ninguém canta. Era como ter uma Marisa Monte particular.
"O que há dentro do meu coração
Eu tenho guardado pra te dar
E todas as horas que o tempo
Tem pra me conceder
São tuas até morrer"
Os versos de Djavan escorriam pelas paredes e por um momento ele acreditou que o casal do quarto do lado parou de fazer amor pra ouvir a voz do amor que cantava ali sobre ele. E que as camareiras pararam nos corredores para, além dos gemidos dos corpos que se desfrutavam, ouvir o prazer da alma que alça vôo e emana o divino em cada um de nós. E que até o segurança lá da portaria fechou sua revistinha em quadrinhos porque sentiu uma vibração no ar e, súbito, olhou para a lua, que tímida, já desistia de ser percebida na sua palidez diurna.
"E a tua história, eu não sei
Mas me diga só o que for bom
Um amor tão puro que ainda nem sabe
A força que tem
é teu e de mais ninguém"
O que vale nessa vida são os momentos que guardamos. E guardamos os momentos mais importantes, os melhores e os piores. Belchior tem um verso lindo - dentre tantos outros lindos - na canção “Como nossos pais”: “Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais”. Mas tem o outro lado: as lembranças mais bonitas, as lembranças do que nos deu mais prazer, alegria, enlevo e satisfação. E a lembrança dela cantando nua, depois do amor, linda e divinamente, ficara gravada e cravada como das preferidas na parede da minha memória. E chegou a condição de ser o quadro mais bonito. Nesse tempo louco, de culto ao corpo e erotizado, se pensa que sexo é tudo, mais do que amor até. Não é. Sexo é ótimo, amar melhor ainda, os dois juntos são o máximo, mas viver esses momentos que transcendem o corpo e o sentimento e se fundem com o espírito, são o que há de mais maravilhosamente humano. Só nós humanos temos essa qualidade do viver. Só nós humanos temos essa faculdade de se embebedar de beleza, de encharcar a alma de leveza, de encher a cara de êxtase.
"Te adoro em tudo, tudo, tudo
Quero mais que tudo, tudo, tudo
Te amar sem limites
Viver uma grande história
Aqui ou noutro lugar
Que pode ser feio ou bonito
Se nós estivermos juntos
Haverá um céu azul"
A beleza dos versos, a beleza da canção, a beleza dela, a beleza da voz dela, a beleza do momento, tudo aquilo fez com que eu agradecesse à vida, a Deus. Mas as coisas desafinaram. Sua voz não canta mais pra mim. Seu corpo não se deita mais com o meu e provoca orgias de prazer. Seu corpo não se deita mais sobre o meu peito e me deleita com o divino de ouvi-la cantar. E hoje na parede da minha memória essa lembrança é o quadro que dói mais. É o quadro mais triste. Ave Belchior.
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