quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O amor tá por fora

Já escrevi, dia desses, que nossa civilização cristã divinizou o sofrimento e assim passamos a medir o amor pela dor que ele gera e não pela alegria, paz e felicidade que produz. Quem eu mais amei foi aquela por quem eu mais sofri, o que não tem valor de verdade sempre. Quero fazer agora uma outra reflexão. Ainda medimos o amor pela dor, mas há algo novo no ar: a idéia de que sofrer por amor é babaquice. Você sofre, tudo bem, mas o mundo ri de você. Ralar pra ganhar dinheiro, pode; se esfolar nesse esquema competitivo, perverso, sem ética, é a regra. Sennet, no livro A corrosão do caráter, mostra o quanto estamos nos destruindo como indivíduos no nosso trabalho. Mas contraditoriamente, o amor é cada vez mais tratado em nossa sociedade frívola e materialista como uma tolice, uma perda de tempo. Vale como negócio. E a dor que às vezes o acompanha, nem se fala. “A Sandra? Tá lá chorando por causa de homem, aquela idiota, ao invés de partir pra outra.” Versão masculina: “O Paulo, olha, um bobo, tá bebendo todas depois que levou o fora da fulana, com tanta mulher no mundo”. Não é assim? Fazemos troça da dor de amor dos outros. Pimenta no dos outros... Sofrer por alguém é pequeno, inconveniente, inoportuno. O cara fica chato. Ficar é legal, transar é o canal. Mas amar, bem isso já é mais complicado para essa gente criada na civilização capitalista, onde as pessoas se usam como coisas e se gastam como máquinas. Pra amar é preciso entrega, doação, algo que não combina com esse tempo que vivemos. O lema é: eu me amo e o outro eu desfruto. Se não vejamos o que é o ficar. Nada mais que um teste-drive. A gente dá uma pilotada no outro, prova um pouco do gosto, pisa um pouco mais fundo, dá uma verificada no motor, faz um balanço da potência... E vai contar pros outros. E vai pro próximo teste-drive. E o transar? Bem esse é o grande lance, desde que a mídia disse para todos que só o sexo e o dinheiro trazem a felicidade.
E se o capitalismo nos fez acreditar que tempo é dinheiro, a cultura aí gerada nos diz que tempo é prazer também. Quer dizer, temos pouco tempo pra gozar tudo e aí não cabe ficar chorando por dor de cotovelo, abandono, cornice. A coisa foi sacramentada já na frase de Luana Piovani, uma de nossas grandes filósofas atuais: “A fila anda”. Um sistema que prioriza o ter ao ser, só pode medir a felicidade pela quantidade de parceiros que se teve/tem, e não pela qualidade das relações; pela quantidade de orgasmos e não pela qualidade. Além do que, o amor é subversivo. Sempre que ele irrompe no coração de uma pessoa, ele imediatamente causa estranheza, incomoda o mundo. O apaixonado vive num outro planeta, a vida lhe fica diferente. E a sociedade gosta do igual, do mesmo, não do diferente. Octávio Paz, num belo texto do livro Labirinto da solidão, diz que “no nosso mundo o amor é experiência quase inaceitável”. E na verdade, todo tipo de amor é viável. Não existe amor impossível. O fato de existir um amor impossível já diz que ele é possível, pois que aconteceu. O que existe é a sociedade e seus impedimentos. Branco com preta, baixo com alta, velho com moça, cristão com muçulmana, homem com homem, mulher com mulher - todo tipo de amor é possível e se realiza, porque é da essência do amor se realizar. Mas porque a sociedade não gosta do amor? Porque, com raiz no diferente, ele rompe com as regras. De novo Octávio Paz: “[...]. A sociedade concebe o amor, contra a natureza desse sentimento, como uma união estável e destinada a criar filhos. Identifica-o com o casamento. [...] Daí também que o amor seja, sem se propor a isso, um ato anti-social, pois cada vez que consegue ser realizado, viola o casamento e o transforma no que a sociedade não quer que ele seja: a revelação de duas solidões que criam para si mesmas um mundo, que quebra a mentira social, suprime o tempo e o trabalho e se declara auto-suficiente.” Vejamos a publicidade, o cinema, as novelas, as letras de música (e não preciso nem citar as obras-primas do forró). Eles excitam as pessoas, erotizam o mundo, passando uma tesão e um espírito de aventura e gozo que as pessoas não tem, mas são iludidas a ter. Quando que a mídia enaltece o amor? Nas grandes datas comerciais: dia das mães, dos pais, natal... De resto é muita mulher pelada, cervejada na praia, carro potente pra conseguir mais teste-drive - não no carro, claro. E aí duas pessoas se apaixonam e fogem desse mundo, mergulham no deles. E logo vem a sociedade para domesticar essa rebeldia – tem que se acalmar, namorar, noivar, casar, ter filhos e, enfim, domesticar-se na vidinha doméstica. E depois ficar cinza olhando o álbum esmaecido de fotos do tempo dos sonhos, das loucurinhas, das escapadas. Ou então tem que acabar a relação.
Se o amor precisa ser domado, aquietado, logo a dor do amor precisa ser desprezada. São Paulo dizia que o melhor era não casar, “mas se arder, então que se case”, mas sem muito fogo. Era preciso segurar s fúria da carne. Hoje, amar é bobo e perda de tempo. E como tempo é dinheiro, e o consumo berra aos nossos ouvidos “transe, transe, transe”, lá vamos nós, buscando uma felicidade cada vez mais distante. Sem direito a amar de verdade, muito menos sofrer de amor, que tudo bem, não é a melhor coisa (já falei disso), mas é digamos, um nobre direito de quem ousou amar e romper.

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