quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O luxo do centro

Teatro José de Alencar, sábado. Lá dentro a música, pra mim a mais bela manifestação do gênio humano, explodia em vozes, instrumentos e boniteza. Teatro José de Alencar, sábado. Lá fora, o lixo, o lixo material e o lixo humano davam outro espetáculo, muito mais espetacular. Dentro, vozes afinadas dedilhavam almas sensíveis. Quase se ouvia o suspiro das pessoas que assistiam. Fora, roncos desencontrados de quem dorme torto num banco de pedra feito pra sentar, como as confortáveis poltronas lá de dentro. Lá dentro, uma mistura de perfumes dava ao ar um cheiro de leveza, de limpeza, um cheiro de mulher saindo do banho, de mulher saindo. Os cheiros se misturavam como aquele leve burburinho que ouvimos, quando a vida, com surpresa e encanto, nos depara com algo agradável, bom. Lá fora os cheiros de lixo, de mijo, de um mundo doente, pobre, feio, sujo, de gente que nunca toma banho, de gente pra quem a arte está em chegar ao dia seguinte. Lá dentro a música levava ao sonho, à fantasia, ao enlevo que só a arte é capaz. Fora, o sonho estava no sono mal dormido, perturbado por aquele ‘barulho,’ e aquecia pratos de comida e preparava camas macias.
A música que vazava para a rua era basicamente popular. Seria ideal, nesse cenário, que se tocasse a Nona de Bethoveen, pra mim a maior criação de um ser humano, se é que Bethoveen foi realmente um ser humano. Ou ainda Trois Gymnopédies, de Satie, pra mim o mais maluco, irreverente e sensível compositor. Seria perfeito: o máximo da beleza e o máximo da feiúra.
Duvido que mesmo na Índia se veja um cenário desses. Antes, as pessoas saindo de seus carros também lavados e brilhantes para o show - como os corpos e pescoços das mulheres -, desviam dos que dormem no chão, das latas, dos papéis que rolam... O luxo desvia do lixo. Mas o perfume não supera o mau cheiro.
Saio no meio do show tocado pela emoção e fico caminhando pelos jardins. Atendo o chamado do Carlton vermelho e opto por mais uns momentos daquele outro espetáculo, na verdade um show assustador da injustiça e da indiferença humanas. Penso no ícone da cultura, da arte e do status cearense mergulhado na triste verdade desse país. Escuto um mendigo deitado rosnar para si mesmo: ‘que horas vai terminar essa zoera?”
La dentro alguém canta “We are the champions”. Aqui fora se poderia fazer o coro: “e nós somos os perdedores”.
Lá dentro as cortinas se fecham. Aplausos para o melhor do ser humano. Aqui fora, céu aberto, o espetáculo continua, hoje e todas as noites, com o pior que conseguimos fazer.

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