domingo, 3 de abril de 2016

MADRUGADA DE SEGUNDA




Tarde da noite. Mais de 1h30min. Madrugada de segunda-feira. Vou caminhando pelas ruas da Aldeota, sem pressa, rumo de casa. Ouço apenas ruídos distantes – um carro que arranca com força, talvez um namorado tentando mostrar que ele tem a força daquela máquina; um cachorro latindo, talvez buscando um outro latido contra sua solidão, quem sabe irritado com aquele tolo namorado. E ouço meu próprio caminhar, que no silêncio fica forte, decidido, como não sou. Distraído, penso em quase nada. Sigo em paz com o sono e os sonhos das casas e apartamentos. E assim penso que a noite dorme em paz.
De repente um baque forte me faz sair daquele estado em que a escuridão e o silêncio se apoderam de mim. Em seguida gritos, vozes alteradas, gente se ofendendo. Vêm da janela de uma casa pobre, de tábuas secas, descoloridas pelo tempo e carcomidas pelas goteiras de tantas chuvas. Apresso o passo. Chego mais perto. É a velha quitandeira, que mora na casa, que grita agora. É ela, sempre tão doce, tão risonha, discutindo com seu filho, que, dizem, anda envolvido com drogas.
Meus pensamentos voam. Penso em quantos mundos trágicos, infelizes, tristes, se escondem atrás dessas janelas cerradas da noite e desses sorrisos abertos do dia. Olho para o edifício alto numa esquina, coisa de rico, e penso nas outras quitandeiras que estão lá dentro. Miro pra um determinado apartamento no terceiro andar. Luzes apagadas. Gente acesa? Ah, essa gente que vive bem pro mundo, mas que na solidão de seu quarto, não vive bem consigo, não dorme... Gente que tem tudo, mas falta tanto, inclusive o sono. Porque o dia não deixa dormir. Porque o dia que já vem começa a pesar. Lembro Fernando Pessoa, o eterno:
"Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!
....
Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
....
O meu cansaço entra pelo colchão adentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.
....
Vem, madrugada, chega! Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio""
E as pessoas se agarram aos santos pra tentar dormir: Santo Lexotan, Santo Rivotril, Santo Frontal. Santo Compaz. Com as estrelas, penso, somos trazidos à realidade de nossas dores, nossa solidões, nossas dificuldades diante disso que se chama viver – essa coisa fácil como respirar e difícil como parar de respirar. Com a escuridão e as estrelas somos trazidos à realidade de nossa condição de seres humanos confusos e perdidos num planeta perdido numa galáxia - perdida em meio a milhões de outras galáxias – que tem mais de cem milhões de estrelas perdidas. Que tristeza penso, ao mesmo tempo tão pequena, tão solitária - desesperadoramente solitária – e infinita dessas janelas que sofrem e não dormem, mesmo apagadas. E que no outro dia, afinal é segunda-feira ,se abrem para o mundo - com sorrisos de quitandeira. Por fora. Mas continuam tristes e baldias. Por dentro. Apresso o passo, quero chegar logo em casa. Preciso dormir. Quando chego em frente ao prédio, olho para as janelas do meu apartamento. Já sei que não vou dormir.

Nenhum comentário: